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Análise: Maradona é maior que Pelé

Maradona é maior para os argentinos do que Pelé é para os brasileiros

26 nov 2020 - 10h18
(atualizado às 10h51)
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Obituários de grandes personagens estão prontos, à espera de que se aperte um botão para ganharem vida. Poucos textos estiveram tantas vezes a ponto de serem publicados como o de Maradona, cujas histórias improváveis dentro e fora de campo o transformaram em figura sem paralelo no futebol.

Um brasileiro que viveu na Argentina, morou com argentinos e tem uma filha argentina precisa reconhecer: Maradona é maior (para os argentinos) do que Pelé (para os brasileiros). E isso talvez diga mais sobre os hermanos e sua afeição pelo caudilhismo messiânico do que sobre Maradona ou Pelé.

A comparação entre os dois atletas não resiste aos números, nem a uma análise subjetiva dos fundamentos (cabeceio e chute com a perna "ruim", por exemplo). A questão é que, para o bem e o mal, para seu próprio bem e seu próprio mal, Maradona foi mais que um atleta. Foi um super-homem tão vulnerável, suscetível a cacos travestidos de kriptonita, que ficar indiferente a sua figura é difícil.

Trata-se de um super-homem, explicam os argentinos, porque transformou o modesto Napoli em uma máquina e carregou sua seleção - sozinho, frisam - ao título mundial em 1986. "Pelé jogava cercado de craques nos Mundiais que ganhou e no Santos", é um argumento maradoniano. "Senna é um ídolo maior que Pelé para os brasileiros, como Pelé vai ser maior que Maradona?", é outro. São tentativas de racionalizar uma devoção irracional, tão complexa que atravessa gêneros, classes sociais e idades.

O "Pelusa" (referência ao cabelo volumoso) alimentou fora do campo tal fanatismo. Declarou divina sua mão esquerda, usada para socar a bola para o gol inglês em 1986. Estimulou a mistura das palavras "dios" e "diez". Não se opôs à Igreja Maradoniana, factoide muito consumido fora da Argentina. Mas também operou milagres na cancha. Em quatro minutos, foram dois gols contra a Inglaterra em 1986, quatro anos após a derrota argentina para os britânicos na Guerra das Malvinas. E não quaisquer gols: foram eles o mais polêmico e o mais espetacular das Copas.

Aquele título deu a Maradona um superpoder raro no futebol, o de implodir barreiras clubísticas. Torcedor declarado do Boca Juniors, com direito a camarote na Bombonera, é adorado até por fãs do River Plate. Um deles se chama Esteban. Pois em maio de 2004 este amigo argentino, capaz supostamente de rir de tudo, então morador de uma república de estudantes de jornalismo em Madri, encerrou raivosamente uma conversa sobre futebol e trancou-se em seu quarto. Não suportou as piadas sobre as circunstâncias em que Maradona acabara de parar em um hospital. Naquele episódio, o botão do obituário maradoniano esteve perto de ser acionado por uma insólita "overdose" de croissants com creme.

"Dios", entretanto, já havia sido internado em 1997, no Chile, e em 2000, no Uruguai. E viria a parar no hospital em 2007, em 2010 (mordido pela própria cadela na boca), em 2012, em 2018 (quando na Copa da Rússia um áudio noticiando sua morte viralizou) e em 2019. A última internação ocorrera este ano, para a retirada de um coágulo na cabeça.

Tantos problemas de saúde, relacionados em geral ao vício em drogas e ao excesso de peso, colocaram setoristas de esporte argentinos em alerta permanente. O constante flerte de Maradona com a morte impôs às redações a missão de ter um texto impecável, pronto e atualizado. O jornal Clarín, primeiro a informar que desta vez ele havia perdido, resumiu assim o sentimento argentino:

"E um dia aconteceu! Um dia o inevitável ocorreu. É um tapa emocional e nacional. Um golpe que retumba em todas as latitudes. Um impacto mundial. Uma notícia que marca uma bisagra na história. A sentença várias vezes escrita mas driblada pelo destino é agora parte da triste realidade: morreu Diego Armando Maradona."

Ao ler isso, escrevi um "lo siento, amigo" a Esteban. A resposta dele: "Maradona é minha infância. É meu ídolo de infância. É a figurinha difícil no recreio da escola. Me lembra a festa de México 86 com meu pai e meus irmãos no centro da cidade. Este é um momento de muita dor pra mim. Mas havia sim gente que o odiava."

Dizer na Argentina que detesta Maradona é como falar mal do churrasco ou do doce de leite. Não está proibido, mas é altíssima a chance de se incomodar. Parte da rejeição a ele tem a ver não com o vício em drogas, mas com política. Em seus últimos anos, Maradona, que nos anos 90 fez campanha para o conservador Carlos Menem, alimentou a imagem de rebelde e se associou incondicionalmente à esquerda. Ficou tão próximo do kirchnerismo que será velado na Casa Rosada.

Essa identificação política impregnou a própria discussão futebolística sobre a preferência por Pelé ou Maradona em toda a América Latina. Muitos simpatizam com o argentino porque veem nele uma atitude mais combativa, imprevisível e não-comercial que a do brasileiro após deixar os campos.

Os bastidores de como o Clarín teve certeza de que poderia publicar o obituário de Maradona são um exemplo da capacidade de, mesmo segundos depois de morto, tirar coisas e pessoas do eixo. A confirmação partiu de duas fontes próximas ao ex-jogador, mas o alerta soou antes. Uma enfermeira foi vista saindo transtornada da casa do ex-jogador. Desnorteada, ela exclamava "Não, não. Não pode ser!". Desta vez, foi.

* Foi correspondente em Buenos Aires entre 2015 e 2016

Estadão
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