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Rússia

Na Crimeia, Vladimir Putin já é o vencedor da Copa do Mundo

Russos na península alvo de uma das piores crises dos últimos anos usam o Mundial em seu país para reafirmar lealdade a Moscou

2 jul 2018 - 05h03
(atualizado às 05h03)
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Minutos depois de a Rússia vencer a Espanha nos pênaltis, imagens do presidente Vladimir Putin circulavam pela internet russa. Nelas, o czar do Kremlin ordenava: "dê um pedaço da Ucrânia para o goleiro russo". Na Crimeia, alvo de uma das piores crises desde o fim da Guerra Fria, a imagem nos celulares passava de mão em mão entre torcedores que, entre risos, não evitavam comentar que o resultado inesperado da seleção e o êxito até agora da Copa já tinham um vencedor: Vladimir Putin.

Não é segredo que o Mundial cumpre uma função de reforçar um sentimento patriótico na Rússia, mesmo que acompanhado por censura e violações de direitos de opositores. Mas, na Crimeia, isso foi seguido por um amplo esforço das autoridades em garantir que a nova região sentisse todos os benefícios de fazer parte de um país-sede da Copa.

Numa praça central de Sebastopol, milhares de pessoas comemoraram neste domingo, 1º, a vitória contra a Espanha, enquanto torcedores e políticos locais insistiam que o resultado aprofundaria o sentimento de lealdade da região com Moscou. "Uma vitória dessas é o que ajuda a unir um país", comentou ao Estado o prefeito de Sebastopol, Dmitry Ovsyannikov, ainda atordoado pelas comemorações. Membro do mesmo partido de Putin, o político local se apressou em transformar a classificação em uma conquista política. "O povo de Sebastopol mostrou que a Crimeia é Rússia."

Enquanto ele falava, uma carreata se formava pelas ruas estreitas do porto, com bandeiras e um só grito sob um território que, até 2014, era ucraniano: "Rússia, Rússia, Rússia!"

A tarde na Crimeia havia começado com enormes doses de cautela. Mas sempre com um forte tom político. "Vamos apoiar nossa seleção. Crimeia também é Rússia", dizia o locutor de uma Fan Fest improvisada na cidade de Sebastopol. Ele, assim como todos os torcedores que lotavam uma praça à beira-mar, sabia que apoiar a seleção da Rússia não era só uma questão esportiva.

"Um jogo como esse une mais a população que 40 anos de propaganda oficial", comentou Larissa Koslova, moradora de Sebastopol, funcionária do exército russo e que, no domingo, fazia tremular sua bandeira.

Num dos cantos da praça, um serviço oferecia fazer fotos dos torcedores diante de uma imensa bandeira russa e que dizia: "A Crimeia é nossa". Em 2014, a anexação da Crimeia pela Rússia ocorreu depois que Putin promoveu um referendo popular na região.

Nas semanas que antecederam à votação, porém, entidades internacionais denunciaram o estabelecimento de um enorme dispositivo militar, com a campanha do "não" à anexação praticamente enterrada.

Nem a condenação internacional contra a anexação ou as sanções fizeram o Kremlin desistir. Hoje, porém, quem questionar publicamente a legalidade da anexação é detido e pode ser condenado a cinco anos de prisão. A reportagem do Estado percorreu por dois dias quase uma dezena de cidades da península e, todas as vezes que iniciava uma conversa sobre o impacto da anexação, os entrevistados pediam para não comentar ou abaixavam a voz para sussurrar.

A mais hesitante era a população tatar, considerada a mais prejudicada diante da anexação ao país-sede da Copa. "Eu não era a favor. Mas a votação ocorreu de forma tão rápida que não houve tempo para uma resposta e mobilização", disse uma produtora de legumes em Ialta, que não podia dar seu nome, sob o risco de represálias.

Desde que assumiu a Crimeia, o governo russo fechou uma espécie de conselho de lideranças da população tatar, cortou o sinal de uma televisão do grupo étnico e deteve ativistas em diferentes ocasiões.

População prefere não assumir torcida pela Ucrânia

Se hoje a Crimeia vive a Copa do Mundo e torce pela Rússia, há apenas seis anos a região via pela TV seu antigo país receber outro grande evento esportivo: a Eurocopa de 2012, na Ucrânia.

Seus cidadãos, porém, se recusam a falar do passado. A lei não os proíbe de comentar sobre como se comportaram antes. Mas o temor é tanto que a opção é pelo silêncio. Dmitri, um gerente de um restaurante em Ialta, se recusou a dizer se chegou a torcer por seu antigo país.

Mesmo na Fan Zone improvisada, as universitárias embrulhadas em bandeiras da Rússia, Prishutova Daria e Sofia Stepurenko, evitavam dizer o que faziam durante os torneios internacionais quando a região era da Ucrânia. "Essa é a nossa primeira Copa. Não me lembro de como era antes", disse Sofia, de 17 anos. Questionada sobre como foi a Eurocopa na Ucrânia, seis anos atrás, ela desconversa. "Só me lembro que meu pai assistia a todos as partidas."

Anna, uma funcionária pública de 54 anos, foi puxada pelo braço pelo marido depois que a reportagem do Estado a questionou se já havia saído algum dia com a camisa da Ucrânia, quando a Crimeia era parte do governo de Kiev. Entre mais de dez pessoas entrevistadas, apenas uma admitiu que já torceu pela Ucrânia. "Claro que já torci pela Ucrânia. Não tínhamos opção", diz Igor, embriagado - ninguém quis dar sobrenomes.

A península não contou com uma Fan Zone oficial e não foi por falta de pressão do Kremlin para que isso ocorresse. Afinal, seria uma manobra eficiente para que Moscou provasse à população local que ela também faz parte da Copa e que a anexação trouxe benefícios reais. Mas o plano esbarrou num problema maior: as sanções internacionais. Com cinco patrocinadores ocidentais - como McDonald's, Coca-Cola e Visa -, a entidade se recusou a montar seu circo na Crimeia. A cidade de Sebastopol ignorou a decisão e criou sua própria festa, com cachorro-quente, algodão-doce, cerveja de outras marcas e uma loja improvisada da Fifa, com produtos contrabandeados e nada oficiais.

O local era o espelho das dificuldades vividas pela região. Sem ser reconhecida no Ocidente e sob sanções, a Crimeia não aceita cartões de crédito estrangeiros e apenas o chip russo de telefone funciona. Graças a um novo e moderno aeroporto, a capital Simferopol está hoje conectada a mais de 50 cidades russas. Mas, se um morador quiser ir a Kiev, precisa voar para Moscou. De lá, para Minsk, na Bielo-Rússia, e só então chegaria a Kiev. Turistas estrangeiros abandonaram o local, que passou a ser exclusivamente um destino dos russos. No aeroporto de Simferopol, a ala de voos internacionais está fechada.

Marcas estrangeiras deixaram a região. Numa das avenidas centrais de Ialta, uma loja abandonada do McDonald's é sinal claro das sanções. Em seu lugar, novas lanchonetes apareceram, com publicidade que avisa que seus funcionários têm experiência de trabalho em cadeias internacionais, como as lojas do McDonald's. Já a Starbucks foi substituída por uma rede chamada 'Starducks', com seu símbolo redondo e verde. No lugar da Kentucky Fried Chicken, a população come no 'Crimean Friend Chicken'.

Estadão
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