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Copa da Rússia

Racismo rouba brilho do triunfo da diversidade

Se a seleção francesa é saudada por ser uma equipe multicultural, sobram casos de insultos nos clubes amadores

18 out 2018 - 05h11
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Quando a França venceu a Copa do Mundo, em julho, milhões de torcedores lotaram as ruas e aplaudiram quando jogadores famosos como Paul Pogba e Kylian Mbappé foram homenageados no palácio presidencial. Como em 1998, quando uma equipe igualmente multicultural conquistou o primeiro título mundial da França, os comentaristas rapidamente saudaram o triunfo de uma França "nova" e mais unida, que se tornaria mais aberta à diversidade, pelo menos no esporte.

Mas Kerfalla Sissoko tinha pensamentos mais perturbadores em sua mente. Um mês antes da Copa do Mundo, Sissoko, de 25 anos, jogador de futebol amador da Guiné, foi brutalmente atacado depois de uma briga durante uma partida da liga perto da cidade de Estrasburgo, no nordeste do país.

Sissoko e vários companheiros de equipe negros disseram mais tarde que jogadores e torcedores rivais haviam dirigido insultos racistas contra eles durante o jogo, mas o que causou a briga pouco importava para ele enquanto corria por sua vida. Encurralado ao tentar deixar o campo, Sissoko foi ameaçado por torcedores rivais - incluindo um segurando uma faca - e espancado por jogadores e fãs, que quebraram um osso de seu rosto.

Em seguida, oficiais da liga o suspenderam por dez jogos por provocar a confusão. "Eu estava com tanto medo e tão enojado que senti que nunca mais jogaria futebol", disse Sissoko.

O que aconteceu a Sissoko em maio, longe do Stade de France, onde os muitos jogadores negros da seleção francesa recentemente comemoraram seu triunfo e enfrentaram a Alemanha na terça-feira, lançou uma luz sobre o racismo e a discriminação que ainda causam danos ao futebol francês no nível amador, segundo os críticos. Uma pesquisa que abrangeu 300 clubes esportivos amadores, publicada em março pela organização antirracismo Licra, deu destaque a 74 casos de racismo, mas os autores do estudo reconheceram que o problema se tornou tão comum que os episódios em geral não são nem relatados.

Incidentes que fazem a notícia - o ataque a Sissoko e seus companheiros de equipe; um ataque a três jogadores negros do lado de fora de uma boate na Córsega em setembro; outro caso de insultos raciais de torcedores em maio de 2017, em St. Pierre d'Oléron, no oeste da França - mostram que isso continua sendo uma questão nacional.

Com certeza, o racismo no futebol não é apenas um problema francês. Insultos contra jogadores negros ainda são rotina em muitas ligas europeias. Na Alemanha, a federação tentou conter acusações de discriminação depois que Mesut Özil, que é de origem turca, se demitiu da seleção nacional neste verão, dizendo: "Sou alemão quando vencemos, e um imigrante quando perdemos".

Mas na França, a vitória na Copa do Mundo por uma equipe multicultural de franceses - brancos, negros e muçulmanos - não conseguiu convencer muitos defensores da luta contra a discriminação que questões antigas e profundamente controversas como raça e nacionalidade foram resolvidas.

"É muito complicado abordar a questão do racismo na sociedade francesa, porque na França fingimos ser cegos para cores", disse Lilian Thuram, defensor da seleção da França na Copa do Mundo de 1998, que acompanhou de perto o caso de Sissoko.

Críticos como Thuram argumentam que, enquanto as equipes nacionais e profissionais da França tiveram progresso na prevenção ou punição do racismo no futebol, as autoridades locais muitas vezes se recusam a reconhecer ou a enfrentá-lo de maneira eficaz quando os problemas surgem.

Autoridades da liga local em que ocorreu o ataque de Sissoko, por exemplo, rejeitaram não só as queixas de abuso racial contra o jogador e companheiros de equipe, mas também a premissa de que a violência foi motivada por raça.

William Gasparini, professor de sociologia da Universidade de Estrasburgo, que estuda discriminação e esportes, disse que há uma grande lacuna entre os meios como a raça é abordada no nível profissional e nos níveis mais baixos do futebol amador.

"Clubes profissionais ou equipes nacionais podem agora estar mais conscientes das questões de racismo do que no passado, mas esse é o estágio, a parte visível", disse ele.

Acrescentou, referindo-se a um código de silêncio do estilo da máfia: "No futebol amador em toda a França, há uma "omertà": os clubes são mais relutantes em abordar o racismo ou a discriminação".

Para Thuram, isso pode ser explicado pela falta de diversidade: as diretorias da maioria das instituições de futebol da França, segundo ele, ainda são povoadas em grande parte por homens brancos. Quatro dos 14 membros do comitê executivo da Federação Francesa de Futebol são mulheres e apenas um membro não é branco. Seu equivalente amador, uma associação que supervisiona centenas de clubes e dezenas de ligas em todo o país, é governada por um conselho no qual todos os 12 membros são brancos.

Sissoko foi agredido durante o primeiro tempo de um jogo em Mackenheim, uma vila de 800 habitantes. Ele e dois dos seus colegas negros na equipe do Benfeld disseram que vários torcedores e jogadores de Mackenheim os atacaram com insultos raciais.

Como o jogo ficou mais tenso pouco antes do intervalo, um desentendimento no campo se transformou em uma luta. Os jogadores de Mackenheim atacaram os jogadores negros, de acordo com os espectadores e companheiros de equipe de Sissoko. Moudi Laouali, de 27 anos, jogador do Benfeld, negro, recebeu um soco no rosto e mais tarde foi espancado no campo.

Quando Sissoko tentou alcançar a relativa segurança do vestiário, os fãs de Mackenheim que haviam invadido o campo bloquearam seu caminho. Ele disse que um deles, segurando uma faca de cozinha, lhe disse: "Nós não terminamos com você." Empurrado para o chão e chutado no rosto e no peito, ele acabou desmaiando.

"Naquele dia, eu me vi morrendo em campo", disse Sissoko. No entanto, o árbitro determinou que Sissoko, um meio-campista de 1,80 m, provocou a briga e deu a ele o primeiro cartão vermelho de sua carreira enquanto ele estava caído, inconsciente, no campo.

"Esse é o mundo do futebol para as pessoas de cor: você tem de ser três vezes melhor do que seus adversários, ou lutar", disse Francis Mante, 39 anos, árbitro e ex-jogador amador na área de Estrasburgo. Mante, que é de Gana, chegou à França em 1998.

"Nós chamamos isso de jogo bonito", ele acrescentou, "mas está instalado em um mundo muito cruel".

Laouali, assim como dois jogadores de Mackenheim, receberam a mesma suspensão por dez jogos de Sissoko. A liga também multou Mackenheim em 500 euros (R$ 2.100), por não controlar seus fãs, mas sua decisão não abordou as acusações de racismo dos jogadores, argumentando que apenas os jogadores negros haviam denunciado os insultos racistas.

"Sempre que os negros dizem que enfrentam o racismo, nós questionamos sua legitimidade, desqualificamos as alegações", disse Thuram, que agora lidera a Fundação Lilian Thuram, uma organização antirracista. Ele argumentou que havia uma forma semelhante de daltonismo após a vitória da França na Copa do Mundo, quando muitos se recusaram a reconhecer que a diversidade da equipe explicava em parte o seu sucesso.

"Nos EUA, as pessoas destacaram o fato de que havia muitos jogadores negros de origem africana na equipe francesa", disse Thuram. "E na França, as pessoas dizem: 'Não, só há franceses'".

Sissoko apresentou uma queixa à polícia em maio, e os resultados da investigação devem ser divulgados até o final do mês. Anne Hussenet, a promotora encarregada do caso, disse que a polícia ainda precisa determinar o que precipitou a violência, que ela disse ter sido causada em parte pelas tensões durante o jogo e também, potencialmente, "por outro tipo de motivos".

Em Estrasburgo, a federação regional implementou medidas para combater a intolerância, incluindo uma em que capitães de equipes rivais façam reuniões para se socializarem antes de partidas que apresentem algum risco de violência ou tensão. Em tais jogos, a federação também pode nomear delegados adicionais para dar apoio ao árbitro.

Descobriu-se que Sissoko, porém, apresenta severo transtorno de estresse pós-traumático; ele disse que ainda acorda com pesadelos, meses depois da surra. Ele jogou pelo Benfeld pela primeira vez desde o incidente em um domingo recente e disse que, enquanto estava feliz por estar de volta ao campo, se preocupava com o contato físico com outros jogadores. "Sinto que não estou 100% presente em campo e, assim que posso passar a bola, me livro dela", disse depois do jogo.

Com a ajuda de organizações locais, ele espera colocar sua experiência em prática ao criar uma declaração contra o racismo e a intolerância que os clubes amadores da região terão de assinar.

"O que aconteceu não pode acontecer de novo aqui", disse Sissoko. "Nunca."

/ TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Estadão
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