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Clubes evitam cartilhas, repassam procedimentos aos jogadores e preferem discutir casos internamente

O que pode e não pode fazer um atleta fora de campo: psicólogo do esporte diz que episódios controversos seriam evitados se atletas entendessem o lugar que ocupam e o que representam para os torcedores

7 jul 2022 - 05h10
(atualizado às 05h10)
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O atacante Jô teve seu contrato rescindido com o Corinthians no mês passado após atraso em um treino da manhã, em mais um episódio que marcou seu comportamento extracampo de forma negativa na sua terceira passagem pelo clube. Na noite anterior, ele foi filmado em uma casa noturna participando de uma roda de pagode na mesma hora em que o time jogava com o Cuiabá. O vídeo mostrou o jogador, que ficou fora da partida por tratar um trauma no pé, aproveitando sua folga, o que gerou a ira de torcedores corintianos. Casos como esses são comuns no futebol brasileiro e passaram a ter mais holofotes na última década. Mas qual é o limite de um atleta quando ele não está dentro de campo?

A vida dos jogadores é muito mais vigiada atualmente do que já foi no passado, e isso graças às câmeras com celulares e à velocidade com que circulam os conteúdos nas redes sociais. Se a equipe e o atleta estão em má fase, o monitoramento é ainda mais rigoroso. Justamente por isso, alguns clubes têm cartilhas com orientações de comportamento e os assessores informam o jogador da importância de se preservar publicamente.

Claro, nem todos seguem a cartilha. E os problemas são empilhados e resolvidos, na maioria dos casos, internamente. Alguns nem chegam ao conhecimento popular.

Corinthians, Palmeiras e Santos, por exemplo, disseram ao Estadão que contam com um regimento interno. Nele, se cobra o cumprimento de horários e prevê punições (não divulgadas) por atraso, falta, descumprimento de regras internas e mau comportamento. Há, também, sanções mais pesadas para práticas discriminatórias. No entanto, esses times de São Paulo dizem não defender uma linha dura com os jogadores fora das dependências do clube, quando estão de férias ou de folga. O São Paulo não se posicionou.

Há orientações para os jogadores evitarem situações de risco, como prática de esportes radicais ou uso de veículos com maior probabilidade de acidente. Na maioria dos casos, não há proibições, mas avisos e orientações. O atleta sabe pesar as consequências de seus atos. Ou deveria saber.

Quando era jogador, Marcos, goleiro do Palmeiras, não podia, por exemplo, andar de moto. Gustavo Scarpa está liberado para andar de skate, como gosta, mas tem de estar atento ao risco de lesões.

"Nos clubes em que passei, existiam cartilhas. Nos últimos, desenvolvemos mais do que uma cartilha, fizemos um manual de normas e procedimentos que iam além de determinar ou obrigar algo, mas principalmente compartilhar decisões com o grupo. Isso pode abranger desde a prática de esportes radicais até a utilização de veículos que tenham maior probabilidade de acidente, já que isso é comum principalmente no período de férias", disse o dirigente Júnior Chávare, com passagens pelo futebol de base de Grêmio, São Paulo e Atlético-MG.

Silas já viveu os dois lados da situação. Foi jogador e viu companheiros dando "escapadas" pela noite. Também foi técnico e teve de lidar com casos de indisciplina no elenco. O principal deles aconteceu quando treinava o Avaí. Um de seus atletas chegou bêbado para treinar na véspera de uma partida importante contra o São Paulo. "Tirei o cara da convocação e o mandei para casa", conta o comentarista da ESPN. "Depois, chamei o diretor e pedi para negociar o atleta. E foi o que aconteceu."

No caso de Jô, o Corinthians fez a mesma coisa: rompeu o contrato do jogador imediatamente. Poderia até ter gerado uma demissão por justa causa, quando o profissional é dispensado sem receber nenhum de seus direitos.

Silas considera, porém, que há casos e casos no futebol. Alguns atletas merecem novas chances e outros não, dependendo do histórico e de fatores relacionados. "A ferramenta de trabalho do atleta é o corpo. Então, sempre sugeria para não fazerem besteiras."

Silas criou, no período em que era técnico, uma estratégia para evitar episódios de indisciplina de seus jogadores. "Aprendi com o (ex-técnico Sebastião) Lazaroni a liderança invisível. Sempre tive isso nos meus grupos. Essa liderança era composta pelos caras mais experientes do elenco. Separava cinco ou seis e falava para eles: 'vocês vão responder por mim porque tenho também que responder à diretoria e à presidência'. Foi algo que me ajudou muito. Os jogadores compravam a ideia", relata.

BOM SENSO

No geral, quando um episódio como o protagonizado por Jô torna-se viral nas redes sociais e causa a ira da torcida, o assunto é discutido internamente. Fato é que ir a baladas e festas em momentos inoportunos não tem sido bom negócio para os atletas. Para citar alguns casos, em novembro de 2020, o volante Ramires rescindiu com o Palmeiras dias depois de ser flagrado em uma casa noturna durante a pandemia. No ano passado, Lucas Lima e Patrick de Paula foram hostilizados por torcedores palmeirenses ao serem encontrados em eventos clandestinos. O primeiro foi emprestado pouco tempo depois e o segundo, vendido ao Botafogo em março deste ano por R$ 33 milhões.

"É muito importante que os atletas tenham vida pessoal, mas que, em paralelo, tenham a consciência de que são representantes, muitas vezes, de grandes massas", elucida João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte.

O psicólogo diz que não haveria episódios controversos caso os atletas usassem o bom senso e tivessem mais sensibilidade. "Atletas devem sair, viajar, ter férias, vida social... Mas, em paralelo, devem entender o lugar que eles ocupam na sociedade. E é aí que os grandes equívocos ocorrem no futebol", opina Cozac.

Ele cita o caso de Gabigol, atacante do Flamengo detido em um cassino clandestino em março do ano passado, em São Paulo, no momento em que a pandemia havia recrudescido e o Brasil registrava mais de 3 mil mortes diárias por covid-19. "Eles expõem as suas carreiras, muitas vezes, pela falta desse conhecimento e desse bom senso". Atualmente, as cobranças no futebol estão muito pesadas, com ataques e emboscadas de torcedores contra seu próprio clube.

DIREITOS

O advogado trabalhista Higor Maffei Bellini reforça que os jogadores de futebol têm os mesmos direitos de outros trabalhadores. Podem e devem aproveitar suas folgas normalmente. "Se o clube deu folga, ele pode fazer churrasco, tomar cerveja, viajar para outra cidade. É um dia livre. O clube não pode fazer nada sobre isso. Há muita hipocrisia nessas histórias envolvendo jogadores bebendo. Se o atleta estava em uma festa às 4h da manhã e tem treino 9h no dia seguinte, mas chegou no clube no horário determinado, sem sobressaltos, não há problema. Chegar de ressaca não justifica multa ou cobrança. O que justifica (a punição) é ele não trabalhar", defende.

No caso do Jô, emblemático nessa situação, ele estava se tratando de contusão, mesmo assim foi para a farra. Seu time jogava e perdeu. E ele não apareceu para treinar (trabalhar) no dia seguinte.

"A função do atleta é treinar e jogar. Se ele está lesionado, é tratar no período estabelecido pelo clube. Jogadores de clubes das Séries A e B têm contrato de licenciamento de imagem em que se alerta para que 'se preservem' fora de campo. Por exemplo, não pode aparecer fumando ou embriagado em público ou nas redes sociais. Ele não pode externar isso para preservar essa imagem que licenciou com o clube."

Volta-se, então, ao começo deste texto quando se aborda o bom senso dos atletas.

Vigiar a vida pública dos jogadores não é algo recente e episódios assim podem ganhar grandes proporções. Em 2011, o atacante Fred, do Fluminense, virou capa dos jornais por uma quantidade alta de consumo de 'caipisaquês' no Rio. Quatro anos depois, o Flamengo afastou cinco jogadores após se deparar com uma foto do quinteto nas redes festejando com bebidas. Alan Patrick, Everton, Marcelo Cirino, Paulinho e Pará foram cobrados pelos torcedores já que o momento do time era difícil - havia perdido seis das últimas sete partidas.

"Pouco importa se o jogador ganha muito ou pouco dinheiro. Na folga, ele pode beber água, suco, cerveja, o que quiser. Óbvio que sem abusos, mas ele não está mais no horário de trabalho", aponta o advogado Bellini. O que a lei defende, a torcida condena, principalmente quando a equipe vai mal nas competições.

Em caso de punição, a sanção disciplinar deve ser aplicada internamente, sem vazar para terceiros. "Não pode divulgar publicamente nada. Isso deve ser feito de forma reservada com o atleta. O jogador que teve sua punição exposta pode, caso não tenha cometido excessos, contestar a sanção na Justiça do Trabalho". São direitos e deveres dos dois lados.

DIRIGENTE NÃO É BABÁ

O presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, entende que o tema precisa ser pautado de forma honesta e sem hipocrisia. "Dirigente não é babá de jogador. O atleta é um trabalhador e não tem de ser vigiado no momento de folga", entende. Mas o mandatário faz uma ressalva. "Ele tem também de cuidar do corpo, que é o instrumento de trabalho dele. Então, se, em qualquer momento, ele coloca o corpo em risco, é motivo de discussão e de crítica". O Fortaleza teve problemas recentes com o atacante Lucas Crispim nesse sentido, por causa de uma festa 'fora de hora' e outros problemas de comportamento no clube. Voltou atrás depois e reintegrou o atleta.

"Porém, algumas atitudes podem e devem ser evitadas, como ir a uma festa depois de derrota e fazer atividades quando está machucado. São situações que é o bom senso que mede", argumenta Paz.

Estadão
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