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Rui Costa conta como as lições da tragédia da Chapecoense podem servir para os clubes na pandemia

Diretor de futebol responsável pela reestruturação da equipe catarinense em 2016 é o terceiro entrevistado da série sobre a retomada financeira dos clubes

18 jun 2020 - 14h09
(atualizado às 14h09)
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O diretor de futebol Rui Costa foi um dos responsáveis pela reconstrução da Chapecoense após o trágico acidente de avião em 2016. Em meio ao luto pela morte de 77 pessoas, em 25 dias, o dirigente montou um elenco praticamente do zero com capacidade para erguer o troféu do Campeonato Catarinense do ano seguinte e terminar na honrosa oitava colocação do Campeonato Brasileiro, o que garantiu vaga para a Libertadores.

Rui Costa é o terceiro entrevistado do Estadão da série sobre a retomada financeira dos clubes após a pandemia. O dirigente atualmente está desempregado. Seu último trabalho teve duração de dez meses no Atlético-MG. Foi demitido em fevereiro após duas eliminações consecutivas - para o Unión-ARG (primeira fase da Copa Sul-Americana) e Afogados-PE (segunda fase da Copa do Brasil).

Na conversa sobre os novos caminhos do futebol, ele conta como a experiência no clube catarinense pode servir de exemplo para as equipes evitarem a crise e aponta também a transformação dos clubes em empresa como uma solução para financiar as dívidas e atrair novos investidores.

O que os clubes podem fazer neste momento para evitar uma crise financeira?

Não quero ser mau interpretado, mas é a oportunidade de os clubes serem muito transparentes com seus torcedores. Infelizmente alguns clubes vão ter que admitir que não disputarão títulos, mas lutarão por sua reconstrução, essa é a palavra. O momento seria para muitos clubes chegarem ao torcedor e avisar: 'a gente vai pagar a conta'. Isso afeta o nível de popularidade de um dirigente estatutário, claro, mas será necessário esse nível de coragem.

Como ser sincero assim sem desestimular o torcedor?

Quem não for profissional vai sucumbir rapidamente. Será necessário um diretor de marketing extraordinário, um CEO extraordinário, um cara para desenvolver novos conteúdos... O executivo de futebol terá que ser capacitado para ser muito transparente com os atletas. Vai ter que saber explicar, por exemplo, por que o clube está contratando com redução de salário. Terá que ter um bom profissional para esclarecer essas coisas. Isso demanda credibilidade, lealdade.

Acha que os clubes vão conseguir contratar?

As relações humanas serão preponderantes nessa pós-pandemia. Vai ter que ter muita conversa com os agentes, com os jogadores e com o mercado. O mercado vai viver de troca. Aquela cultura que existe de não emprestar para o rival... Aquele jogador que não está sendo muito aproveitado no seu elenco e pode servir para o rival... Azar, porque ele vai diminuir sua folha, valorizar seu ativo e você vai conseguir vender depois. Esse mercado de troca, de alternativa internada vai ser muito aquecido. Vai ser um processo de reconstrução de conceito de gestão.

Acabou a contratação de 'baciada'?

Vai diminuir porque não vai ter quem contratar. Também será necessário estabelecer critérios muito claros: por que contratou? Por quanto? Quem vai pagar? Como assumir o endividamento de um novo jogador se o nível de endividamento já é muito grande? Fora Grêmio, Flamengo e Palmeiras, os clubes terão de fazer realinhamento de estratégia de mercado. Se tem uma profissão que vai ser valorizada hoje é a de scout de clube. Vai ter que ter uma inteligência no clube, inclusive de apoio para o diretor executivo de achar aquilo que ninguém acha.

As vendas para o exterior também devem diminuir.

Os clubes vivem da venda dos direitos de transmissão e venda de atleta. O mercado europeu, que é o grande comprador, vai pagar menos pelos nossos produtos. Isso é inegável. Na ordem de 30% a 40%. O mercado europeu vai se abastecer muito do seu mercado interno.

O Cruzeiro é o case a não ser seguido?

O case Cruzeiro transcende a má gestão. Ali não é só gestão temerária, tem também código penal. Mas começa por uma gestão temerária. Os caras contrataram sabendo que não poderiam pagar. Ganharam títulos, comemoraram, mas acabaram com o clube. Agora os dirigentes que assumiram estão junto os cacos. Mas a cada dia abre um armário e sai um esqueleto.

Você acredita que esse cenário abre ainda mais o caminho para muitos clubes virarem empresa?

Se pensar que 39% do endividamento dos clubes é fiscal e, portanto, os outros tantos são dívidas de médio e longo prazo, a opção por transformar o clube em Sociedade, separar o estatutário e possibilitar ampla renegociação da dívida fiscal e fazer recuperação judicial das dívidas não tributárias é o melhor dos mundos. Tem clubes com dívidas de R$ 600, 700, 800 milhões. São dívidas impagáveis.

Pode dar o exemplo de algum clube que esteja nessa situação?

Vou pegar um exemplo próximo que tive. Isso posso falar porque está no balanço do clube. O Atlético-MG paga de juros de dívida R$ 66 milhões por ano. Imagina poder colocar isso no futebol anualmente. Investir na base. Salvo todas as interpretações que existem e eu tenho questionamentos em termos legais, pois também sou advogado, essa proposta de clube-empresa está aí. A maioria os clubes hoje não consegue ter fluxo de caixa. Qualquer gestor de curso de primeiro ano de administração sabe que uma empresa sem fluxo de caixa não anda.

O que discorda dessa legislação sobre clube-empresa?

Acho que muitas vezes aproveita cases de outros lugares sem respeitar as nossas idiossincrasias. Não dá para comparar o cenário daqui com o da Inglaterra, onde o dono de um clube lá bota 1 bilhão de euros por ano. O Manchester City tem de orçamento anual somente para contratação R$ 1 bilhão. O X da questão por aqui e, isso posso dizer porque trabalhei no Athletico Paranaense, que é o clube mais empresa da América do Sul. O que o Athletico busca? Busca um investidor, o aporte de fora. Tem muita gente querendo botar dinheiro no futebol. Mas ninguém vai botar dinheiro em um negócio que está quebrado, sem crédito, sem patrimônio.

Há exemplos também de clubes que devem seguir como associação?

O Grêmio, de forma estatutária, conseguiu criar mecanismos absolutamente profissionais. Ele pode optar por ser o Real Madrid do Brasil. O Real Madrid é um clube estatutário. Tem que buscar meio legal para parar de perder dinheiro e atrair investimento.

Torcida da Chapecoense após a tragédia.
Torcida da Chapecoense após a tragédia.
Foto: Divulgação/Twitter / Estadão

De que forma a experiência que você teve na Chapecoense te ajuda a enxergar o futebol na pandemia?

Sempre tomo cuidado ao tocar nesse assunto porque o fato gerador de tudo toca muito as pessoas. Respeitada a tragédia e como foi devastadora em um clube emergente, que não tinha dívida tributária, mas que tinha orçamento limitado. De uma hora para outra aquilo terminou. Foi para mim uma experiência única em vivência de adversidade. Sem fazer comparação, porque não há nada mais adverso do que aconteceu com a Chapecoense. Somente dois jogadores sobreviveram e em 25 dias tinha que colocar um time em campo novamente. Ninguém vai passar por isso. Esse episódio me mostrou que no futebol quando há clareza de propósito, autonomia, respeito as questões orçamentárias e competência funcional é possível superar qualquer crise.

Que lição você tirou daquele momento?

A ação do torcedor que está direcionada para o ganhar pode ser direcionada para permanecer. Foi o que fizemos na Chapecoense. Ele entendeu que naquele momento não deveria cobrar. As paixões dos torcedores podem ser direcionadas. Como? Com a verdade. Informar que no ano não serão feitos grandes investimentos e que é importante a fidelização. Se o torcedor entender que o time dele está enfrentando uma adversidade com transparência ele vai apoiar.

Basicamente, afinar a comunicação com o torcedor.

O ambiente do futebol é muito direcionado para o ganhar e perder. Se ganha está tudo ótimo e se perde é um imbecil. O pós-pandemia deve deixar mais claro que esse não é o caminho. Não estou defendendo a derrota, de maneira nenhuma. Também acho que é possível investir mesmo endividado. Lembro o Barcelona de 2008 que era um clube quebrado. Mesmo assim fez investimento porque entendeu que precisava dar um passo à frente para ir adiante e deu tudo certo. A transparência a que me refiro deve ser feita desde o início. Por exemplo, no início da temporada o presidente vai dar seu recado em entrevista coletiva. O CEO do clube vai dar seu recado. O diretor executivo... Aí vai ficar claro para o torcedor o planejamento. Uma parte vai entender e outra não.

Estadão
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