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A época em que a seleção brasileira era formada por filhos de imigrantes

Até a 1ª metade do século 20, filhos de italianos, alemães, ingleses e portugueses eram presença comum na equipe nacional de futebol.

14 jul 2018 - 12h34
(atualizado às 13h14)
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Como nas atuais seleções da França, Bélgica, Inglaterra e Portugal que disputaram a Copa do Mundo na Rússia, repletas de atletas cujos pais nasceram em outros países, houve um tempo em que o time brasileiro era formado em grande parte por filhos de imigrantes.

Seleção brasileira em 1919 tinha ao menos cinco filhos de imigrantes no elenco
Seleção brasileira em 1919 tinha ao menos cinco filhos de imigrantes no elenco
Foto: Arquivo Nacional / BBC News Brasil

Na primeira metade do século 20, enquanto o Brasil atraía grandes levas de estrangeiros, sobrenomes italianos, alemães, ingleses e espanhóis - como Lorenzato, Mutzenbecher, Neville e Ojeda - se tornaram comuns na equipe nacional.

Vários desses atletas chegaram à seleção após se destacar em clubes fundados ou frequentados por imigrantes, muitos dos quais existem até hoje e tiveram papel central na difusão do futebol pelo país. Pertencem ao grupo Palmeiras, Corinthians, Vasco, Cruzeiro e Bangu, entre outros.

Quando o Brasil conquistou seu primeiro título, o Campeonato Sul-Americano de 1919, ao menos cinco titulares eram filhos de imigrantes - mesma proporção que a da atual seleção francesa, considerada uma das mais multiculturais de todos os tempos.

Um deles era o atacante Friedenreich, filho de um alemão. Outro, Neco, tinha pai português. Três jogadores, Marcellino, Barbuy e Bianco, eram filhos de italianos.

Os cinco se projetaram no futebol de São Paulo, onde, em 1920, estrangeiros eram 35% da população da cidade, segundo o IBGE.

Origem do futebol no Brasil

O próprio responsável pela introdução do futebol no Brasil vinha de uma família de imigrantes, o paulistano Charles Miller.

Filho de um escocês, Miller conheceu o esporte ao estudar na Inglaterra e o trouxe ao Brasil em 1895.

Outro brasileiro-britânico, Oscar Fox, ajudou a difundir o futebol no Rio de Janeiro ao participar da fundação do Fluminense, em 1902. Em poucas décadas, famílias ricas cariocas abraçaram o esporte, encampado por agremiações que tinham outras modalidades como carro-chefe - caso do Flamengo e do Botafogo, inicialmente focados no remo.

Paralelamente, o esporte também se popularizava entre as classes baixas brasileiras, engrossadas pelos milhões de europeus, árabes e japoneses que migraram ao país entre os séculos 19 e 20.

A pujança da atividade cafeeira transformou São Paulo em um importante polo industrial e destino de imigrantes. Surgem nessa época vários clubes de futebol que agregavam estrangeiros - caso do Germânia, fundado pela comunidade alemã, do Esporte Clube Sírio, da colônia árabe, e da Portuguesa de Desportos.

Outros times amadores, formados principalmente por operários, disputavam torneios nas várzeas dos rios Tietê, Tamanduateí e Aricanduva - origem da expressão "futebol de várzea".

Vários desses grupos agregavam italianos - comunidade estrangeira mais numerosa na São Paulo de então - e forneceram jogadores para dois clubes fundados na época, o Corinthians e o Palmeiras.

No Rio, operários fundaram o Bangu, e imigrantes portugueses criaram o Vasco.

Fundação do Palmeiras

"Aquele italiano que estava marginalizado em uma sociedade paulistana dominada por aristocratas cafeicultores, a partir do futebol, passa a ter uma identidade e a ganhar um pertencimento", diz à BBC News Brasil o historiador Fernando Galuppo, autor de sete livros sobre o Palmeiras, nascido como Palestra Itália.

Ele conta que a criação do clube, em 1914, buscava agrupar imigrantes de todas as partes da Itália. Até então, famílias italianas em São Paulo se reuniam em associações de sua província de origem. Fazia poucas décadas que a Itália havia sido unificada, e muitos migrantes que trocaram o país pelo Brasil não falavam italiano, e sim línguas regionais.

Os fundadores do Palestra publicaram anúncios em jornais para atrair futebolistas da colônia. Entre os que atenderam ao chamado havia atletas nascidos na Itália e muitos filhos de italianos - caso, segundo Galuppo, de Heitor (Ettore) Marcellino, Amilcar Barbuy e Bianco Spartaco Gambini, os três presentes na seleção brasileira vencedora do Sul-Americano de 1919.

Antes de passar ao Palestra, Gambini e Barbuy jogaram no clube que viria a ser o principal adversário do time, o Corinthians.

Em dissertação de mestrado apresentada na USP em 2014, o historiador Marco Aurélio Duque Lourenço aborda a hipótese de que a rivalidade entre os dois clubes tenha nascido com a transferência dos jogadores e rixas dentro da comunidade italiana.

Lourenço lembra que a palavra rival vem do latim "rivalis", aquele que habita a mesma margem do rio - e que os dois clubes sempre treinaram na margem esquerda do Tietê (décadas depois, o terceiro grande clube paulistano, o São Paulo, também montou um centro de treinamento no mesmo lado do rio).

De operários para operários

Autor de O Futebol Explica o Brasil, o jornalista Marcos Guterman diz que o Corinthians foi fundado quatro anos antes do Palestra para atrair imigrantes de todas as nacionalidades e brasileiros pobres. "Era um clube de operários para operários: a ideia era que a torcida fizesse o time, e não o contrário."

Vinha do Corinthians o quarto filho de estrangeiros da seleção de 1919 - Manuel Nunes, o Neco. Antonio Roque Citadini, conselheiro vitalício do clube e autor de uma biografia sobre o jogador, diz à BBC News Brasil que Neco era filho de um português que vivia no Bom Retiro, bairro paulistano de imigrantes.

O quinto filho de estrangeiro, Arthur Friedenreich, iniciou a carreira no Germânia e foi o grande destaque da campanha vitoriosa.

Com pai alemão e mãe brasileira negra, o atleta simbolizava ao mesmo tempo a projeção de descendentes de estrangeiros e de negros num esporte inicialmente dominado pela elite branca nacional.

Fernando Galuppo diz que, nos primórdios do futebol em São Paulo, famílias ricas "faziam campanha contra a inserção de elementos populares no jogo". Várias delas frequentavam o Club Athletico Paulistano, na época o principal rival do Palestra Itália.

Quando os dois clubes se enfrentavam, colunistas do jornal O Estado de S. Paulo que também eram sócios do Paulistano "se referiam aos jogadores do Palestra com todo tipo de impropério e ofensa", segundo o historiador. "Era um verdadeiro choque de classes: o time do operário italiano chão de fábrica contra o dos aristocratas e barões do café."

Na época, imigrantes pobres italianos eram discriminados em São Paulo e tratados por termos pejorativos, como carcamanos e italianinhos.

Por outro lado, Galuppo afirma que os jogadores ítalo-brasileiros jamais foram contestados na seleção brasileira. "A perseguição acontecia muito mais no plano doméstico do que no nacional."

Racismo no futebol

Para Marcos Guterman, jogadores negros da seleção sofriam mais questionamentos que os filhos de imigrantes naqueles anos.

Em O Negro no Futebol Brasileiro, clássico da literatura esportiva nacional, lançado em 1964, o jornalista Mário Filho diz que Barbosa, Juvenal e Bigode - três atletas negros - levaram injustamente a culpa pela derrota do Brasil na final da Copa de 1950, postura que, para ele, indicava o racismo entre a população.

"Quando o brasileiro acusou Barbosa, Juvenal e Bigode, acusou-se a si mesmo", escreveu Mário Filho.

Guterman diz que, na época, circulava o discurso de que "havia negros demais na seleção". "Tanto que, na Copa de 1954, quase não havia negros no time." O Brasil caiu nas quartas de final.

A redenção ocorreu em 1958, com a conquista do primeiro Mundial sob a liderança de Pelé. Desde então, negros se tornaram presença permanente na seleção.

Perseguição na 2ª Guerra

Ainda que, segundo os pesquisadores entrevistados, a xenofobia no Brasil contra atletas filhos de imigrantes não fosse tão forte quanto na Europa atual, jogadores e clubes brasileiros ligados ao Japão, à Alemanha e à Itália sofreram grandes pressões durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), quando o governo Getúlio Vargas rompeu laços com as três nações.

O clube Germânia, que lançara Friedenreich, foi forçado a mudar de nome, virando Pinheiros.

O Palestra se tornou Palmeiras, tirou as cores da bandeira da Itália do escudo e afastou todos os dirigentes italianos. O clube chegou a pedir salvo-condutos para que sócios pudessem acompanhar jogos do time em outras cidades.

Galuppo afirma que a repressão à identidade italiana talvez esteja na origem de um hábito presente até hoje entre palmeirenses. "É a única torcida que, enquanto toca o hino nacional, canta uma paródia em cima do hino."

Em Belo Horizonte, outro clube criado por italianos e que também se chamava Palestra Itália foi rebatizado como Cruzeiro.

Cornetar e terminar em pizza

Sob a forte agenda nacionalista do governo Vargas, palavras estrangeiras associadas ao futebol foram abrasileiradas. Mesmo assim, Galuppo diz que termos criados por ítalo-brasileiros que frequentavam estádios sobrevivem até hoje no vocabulário nacional, caso do verbo cornetar (criticar, reclamar) e da expressão "terminar em pizza".

"A expressão surgiu no Palestra, onde jantares com pizza apaziguavam os sócios após debates acalorados", afirma.

Galuppo diz que a 2ª Guerra acelerou o abrasileiramento do Palmeiras e de outros clubes de estrangeiros. Nas décadas seguintes, conforme a imigração para o Brasil arrefeceu, a presença de filhos de imigrantes na seleção se diluiu.

Com o fim do conflito mundial, ele afirma que clubes ítalo-brasileiros deixaram de ser oficialmente perseguidos, mas que a crise só foi realmente superada em 1965, quando o Palmeiras representou o Brasil numa partida contra o Uruguai, no Mineirão. Os atletas palmeirenses venceram o jogo por 3 a 0.

A paz estava selada.

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