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Meninas da zona leste de São Paulo desafiam o mundo na NBA

Trio de alunas de escola estadual localizada no extremo leste da capital paulista vai jogar torneio mundial juvenil nos EUA

5 ago 2018 - 06h11
(atualizado em 6/8/2018 às 16h35)
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Quem chega à E.E. Recanto Verde Sol, no extremo leste da capital paulista, não tem muito motivo para acreditar que há uma mágica acontecendo diariamente ali dentro. Numa quadra modesta, com tinta gasta, paredes pichadas e pouca iluminação, meninas de 9 a 17 anos correm movidas por cestas e sonhos. Três delas estão vivendo sonho especial: vão jogar basquete na principal liga do mundo, nos Estados Unidos.

Kathllen Silva, 13 anos, Evelyn Vital, 14, e Julia Rabelo, 14 também, embarcaram na última sexta rumo a Orlando (EUA) para representar, ao lado de outros 17 estudantes, a seleção da América do Sul na edição inaugural do Campeonato Mundial Júnior da NBA. Trata-se de torneio juvenil que reúne meninos e meninas de 13 e 14 anos de várias partes do globo. O torneio será disputado entre os dias 7 e 12, dentro do complexo Walt Disney World Resort.

Há outros brasileiros na seleção sul-americana - só a equipe feminina conta com sete. Porém, o que faz da história do trio da Recanto Verde Sol quase inacreditável é a sua origem.

Primeiro, a quadra é praticamente um oásis em meio a um bairro com pouca ou quase nenhuma opção de lazer. Os crimes por ali são registrados no 49.º DP, de São Mateus, sexto pior colocado no mais recente Ranking de Exposição a Crimes Violentos da Cidade de São Paulo, produzido pelo Instituto Sou da Paz em parceria com o Estado. Enquanto a reportagem acompanhava o treino das meninas na última semana, por exemplo, corria pela escola a notícia da morte de um garoto de 10 anos por suposto disparo acidental de arma de fogo dentro de sua própria residência.

Segundo, como manter numa região na qual o esporte está longe de ser prioridade um investimento mensal na casa dos R$ 2 mil? É quanto custa o projeto tocado pelo professor Rodrigo Mussini, de 38 anos. Desse valor, apenas R$ 500 são custeados pelo governo. O resto? Bem, rifas, vaquinhas e bom coração são algumas das fórmulas encontradas para manter cerca de 80 meninas em atividade.

"Sou professor nos dois períodos. Ganho por um terço das aulas. O restante é voluntário. A gente faz rifa para conseguir as coisas... Fizemos uma com a academia do bairro para as meninas treinarem de graça. É assim, pedindo para amigo, gente que está afim de ajudar, que tocamos o barco", explica Mussini.

Foi via arrecadação, também, que eles conseguiram bancar a emissão dos passaportes e vistos das três representantes da escola no torneio da NBA. "Lá elas vão encontrar uma estrutura que não fazem ideia. Muitas aqui não têm condições nem de fazer todas as refeições do dia", conta o técnico, há oito anos à frente dessa missão no bairro.

Intrusas

A iniciativa tem dado tão certo que a Recanto virou celeiro de promissoras "basqueteiras" e bicho-papão de competições intercolegiais. Para Kathllen, Evelyn e Julia chegarem à seleção sul-americana, elas enfrentaram e venceram a edição regional da Junior NBA League, disputada por 170 alunas de 12 escolas, algumas das mais ricas e tradicionais da capital, como St. Paul's School, Bandeirantes, Miguel de Cervantes e Dante Alighieri - derrotado na final pelas garotas da ZL.

Em meio a esse campeonato, a NBA promoveu a seletiva continental para formar a equipe da América do Sul que iria a Orlando. Lá foram as guerreiras da Recanto passar por um novo funil, desta vez com 18 rivais - brasileiras, argentinas e uruguaias. "Foi surreal todo esse percurso. Disputar uma final contra o Dante, só colégios tops, uma escola estadual ganhar... Um terço do time do Mundial será da Recanto! Não vamos levar só as três, mas toda uma história. Daria um livro", diz o treinador.

Ex-aluna da escola já foi para a seleção

Os frutos colhidos por Rodrigo Mussini na quadra da Recanto acabam entrando na mira de clubes tradicionais, como ADC Bradesco e Instituto Brazolin, com quem a escola possui parcerias. A ideia é "segurar" as meninas o máximo possível, para que o trabalho de formação dentro e fora das quadras seja completo.

Depois, elas são repassadas às grandes agremiações, onde ganham bolsas de estudo e começam a construir a carreira. Uma das primeiras alunas do treinador já integra as seleções brasileiras de base. Trata-se de Raiane Dias, de 15 anos, atleta do Bradesco que disputou no ano passado o Sul-Americano Sub-14, na Colômbia. O Brasil ficou com o vice-campeonato ao perder a final para o Chile.

"Foi uma experiência incrível e única, poder melhorar meu basquete com técnicos diferentes e fazer amizades com garotas de outros Estados. É uma bagagem e tanto pra minha carreira ter passado pela seleção de base e conseguir um vice campeonato internacional", comenta Raiane, cheia de orgulho.

Apesar da estrutura deficitária, a Recanto não para de colecionar títulos. Além do regional da NBA, ganhou a Copa Nescau e o circuito escolar do ABC em 2015 e 2016. A equipe também conquistou o primeiro lugar na categoria sub-14 da capital nos Jogos Estaduais do Estado de São Paulo (Jeesp). "Esse projeto acontece com meninas totalmente carentes, que ninguém conhecia. Isso dá uma direção para o nosso trabalho. Meninas quererem ser resgatadas pelo esporte", afirma Mussini, que enxerga na missão uma oportunidade não apenas de formar atletas, mas também de afastar as garotas da criminalidade.

"As histórias de vida de cada uma aqui são difíceis. Muitas não têm suporte familiar. Já tive de levar uma aluna até a casa dela porque ninguém a veio buscar após o treino", conta. Veja algumas das meninas que se destacam.

Kathllen Suzuki Oliveira Silva

Com 13 anos, é a mais jovem do trio e quem começou mais tarde no basquete. "Quero fazer educação física e ser treinadora se não der certo como jogadora profissional."

Julia Fonseca Rabelo da Silva

Tem 14 anos. Tinha outros planos antes da bola laranja aparecer: "Queria ser jogadora de futebol", diz a estilosa ala, que usa óculos de proteção como os astros da NBA.

Evelyn Mendonça Vital

"Eu nem sabia o que era basquete", admite a ala de 14 anos quando deu os primeiros arremessos. O maior sonho? "Ser jogadora profissional para rodar o mundo."

Estadão
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