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Censura branca da FIA reforça contradição da Fórmula 1 em discurso por igualdade

A decisão da FIA foi tomada em um país de histórico racista e homofóbico e reflete exatamente o oposto do que a Fórmula 1 almeja ser: aberta à diversidade e às causas sociais

29 set 2020 - 04h01
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A dupla da Mercedes novamente fez dobradinha em 2020
A dupla da Mercedes novamente fez dobradinha em 2020
Foto: AFP / Grande Prêmio

Apesar da vitória lograda por Valtteri Bottas no GP da Rússia do último domingo, Lewis Hamilton foi o grande assunto em Sóchi. Claro, pela iminência de igualar o recorde de 91 vitórias na Fórmula 1, que ainda pertence a Michael Schumacher, como também pelas punições sofridas — provocadas por uma série inexplicável de erros — que adiaram a possibilidade de conquistar o triunfo histórico para dentro de duas semanas, mas também pela reação da FIA (Federação Internacional de Automobilismo) aos protestos feitos em Mugello, no meio do mês.

Hamilton, ao vencer o GP da Toscana, subiu ao pódio vestindo uma camiseta com seguinte frase: "Prendam os policiais que mataram Breonna Taylor". Breonna, mulher preta de 26 anos, era paramédica quando, em março, a polícia invadiu sua casa, na cidade de Louisville, estado norte-americano do Kentucky, na calada da noite.

Para relembrar o caso: o motivo da invasão foi um mandado de busca e apreensão sem aviso prévio, daqueles que podem ser realizados com pé na porta, de supetão. O alvo era um ex-namorado da paramédica, suspeito de vender medicamentos controlados. As investigações posteriores provaram a inocência de Breonna, que sequer tinha conhecimento da história. Ela e o suspeito, Jamarcus Glover, tinham terminado o relacionamento meses antes.

Lewis Hamilton usou camisa pedindo a prisão dos policiais que mataram a jovem Breonna Taylor (Foto: AFP)

Os policiais invadiram a residência, o que fez o namorado de Taylor, Kenneth Walker, que dormia ao lado dela, acreditar que se tratava de invasores. Pegou, então, uma arma - registrada e legal -, e fez com que os policiais atirassem 20 vezes na direção dele. Segundo testemunhas anônimas no local, um dos policiais estava no quintal e atirou por uma janela que tinha cortina fechada - sem qualquer visão do local, portanto. Breonna Taylor estava dormindo e foi atingida oito vezes. Morreu na hora.

O assassinato, ocorrido em março, se somou a tantos outros, nos Estados Unidos, no Brasil, no mundo como um todo, de vítimas pretas oprimidas por uma sociedade branca que insiste em calar suas vozes, seja com decisões controversas, seja na base da violência.

Um dia depois do protesto de Hamilton em Mugello, a emissora BBC noticiou que a FIA estudava investigar a manifestação do britânico. As reações ao redor do mundo, ao menos nas redes sociais, foram em sua maioria muito negativas, de modo que a entidade, naquele momento, recuou.

Semana passada, novos protestos eclodiram nos Estados Unidos depois que a justiça americana decidiu não prestar queixa contra nenhum dos policiais envolvidos no assassinato cruel de Breonna. Lewis Hamilton se uniu a tantas personalidades que se manifestaram contra a decisão que, na prática, absolveu os culpados pelo crime brutal.

Hamilton avisou que não vai parar de protestar (Foto: Reprodução)

Às vésperas do último GP da Rússia, a FIA publicou uma mudança no protocolo de cerimônia no pódio da Fórmula 1. "Ao longo dos procedimentos da cerimônia de pódio e das entrevistas pós-corrida, os pilotos que terminarem em 1°, 2° e 3° precisam seguir vestidos apenas com seus macacões, fechados até o pódio, e não abertos até a cintura", apontou a determinação da entidade.

Tal medida é, sim, uma maneira de censurar e cercear manifestações. Diga-se de passagem, não é muito diferente do que é adotado pela Fifa, que na teoria se diz contra o racismo, mas faz muito pouco na prática. Quanto ao automobilismo, um esporte esbranquiçado, elitista e pouco preocupado com questões que vão além das pistas, Hamilton tem sido uma das poucas pessoas, talvez a única, a se pronunciar frequentemente e frontalmente contra o racismo, a repressão policial e a desigualdade social. E maneira que encontrou para protestar em Mugello acabou sendo banida pela organização que regula o esporte a motor como um todo e a Fórmula 1 em particular.

Trata-se de uma enorme contradição, pois, uma vez que a Fórmula 1 lançou, em julho, a campanha 'We Race as One' (corremos juntos, em tradução livre), o objetivo era promover a igualdade e apoiar causas sociais. Mas, na esteira da intervenção da FIA, o significado de tal campanha enfraquece muito e parece coisa para inglês ver.

Curiosamente, a decisão da FIA foi tomada às vésperas de uma corrida em país com histórico racista e homofóbico. De modo que não tenha sido uma surpresa.

Muitos dizem que o veto tem a ver com o intuito de evitar manifestações políticas. Ora, cada ser humano é um ator político, fazemos política o tempo todo, mas o que acontece é que protestos do gênero são confundidos erroneamente com partidarismo. Ser antirracista, ser favorável à preservação do meio ambiente ou ser contrário à desigualdade social ou à repressão policial tem a ver com humanidade.

Medida da FIA revela contradição de uma Fórmula 1 que se propõe a ser mais aberta à diversidade e às causas sociais (Foto: Mercedes)

Mas Hamilton avisou que não vai se calar e que, de uma forma ou de outra, seguirá protestando em favor do que acredita ser correto e justo. Lewis sabe o tamanho que tem e sabe também o alcance da sua voz ao redor do mundo. No momento em que tentam silenciá-lo, é preciso bradar ainda mais alto.

Engravatados da FIA, aceitem: a luta contra o racismo e contra preconceito de todos os tipos é um caminho sem volta.

Grande Prêmio
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