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Sobre malucos e maluquices

O fato de termos contas externas mais sólidas reduz a probabilidade de um ataque especulativo

20 ago 2018 - 05h12
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Em livro de 1991 (Inventing the Flat Earth), o historiador Jeffrey Russell desmistifica a ideia de que se pensava na Idade Média que a terra era plana. Mesmo naquela época, diz ele, já se sabia que isso era uma asnice e em nenhum momento Cristóvão Colombo temeu despencar no vazio em algum ponto do oceano. Mesmo assim, temos ainda hoje malucos que nos divertem acreditando neste despautério, o que já é tema para psiquiatras, não historiadores. 

Em economia, há ideias bisonhas de quilate equivalente. Uma das mais populares é a de que se a inflação está subindo, o Banco Central não deve elevar os juros, já que isto pode aumentar o custo financeiro das empresas, que vão repassar os custos mais altos para os preços, provocando mais inflação. Quando um aluno de economia escreve isto na prova significa que ele faltou muito no curso. Quando isto é dito pelo presidente da Turquia, o caso é mais grave. 

A inflação turca medida em 12 meses passou de 10,2% em março de 2018 para 15,8% em julho, o nível mais alto em 14 anos. O próprio Banco Central admite que a tendência de elevação deve continuar. No entanto, manteve as taxas de juros estáveis em 17,75%, certamente para não contrariar as teses excêntricas do presidente. Para piorar o quadro, o próprio Erdogan se viu no meio de uma barafunda diplomática com os EUA, de onde Trump, outro maluco, lançou uma série de medidas comerciais de retaliação. 

A Turquia cresceu 7% no ano passado, garantindo mais uma vitória eleitoral para Erdogan em junho último, com 52,6% dos votos. Mas suas contas externas são vulneráveis. O país registra um déficit em transações correntes de 5,4% do PIB, um déficit na balança comercial de US$ 47 bilhões e tem apenas US$ 85 bilhões em reservas internacionais, cerca de 10% do PIB. O Brasil está em melhor forma no setor externo. Nosso déficit em transações correntes em 2017 foi o menor dos últimos 10 anos e ficou em apenas 0,48% do PIB. Nossa balança comercial é superavitária em US$ 58,6 bilhões e nossas reservas giram em torno de US$ 380 bilhões, quase 20% do PIB. No meio deste tiroteio, o dólar americano chegou a se valorizar 83% contra a lira turca. No caso do real, a valorização não passou de 17,8%. O Brasil não é a Turquia. 

Mas, pela propriedade comutativa da obviedade, a Turquia também não é o Brasil. Dados do Banco Mundial indicam que de 2010 a 2017 o PIB da Turquia, em dólares constantes, acumulou um crescimento de 56%, ante míseros 3% no caso brasileiro. A dívida pública em relação ao PIB também é mais confortável, 53% ante os nossos 77% (e subindo). O déficit nominal turco não passa de 3% do PIB, algo bem menos oneroso que os nossos 7,8%.

Claro que uma vulnerabilidade externa é mais apta a deflagrar um forte movimento de correção do câmbio. O fato de termos contas externas mais sólidas reduz a probabilidade de um ataque especulativo. Mas a variável crucial é, mais que tudo, a maluquice dos governantes. Erdogan, que nomeou seu jovem genro como ministro de Finanças, tem ideias e comportamentos bizarros que acabaram por desestabilizar seu país. Os traders que operam papéis com risco da Turquia encontraram, graças a ele, um ambiente perfeito para buscar ganhos na volatilidade. Se o mercado pensa que o país é frágil e se o governante acirra esta sensação, a crise é inevitável. 

Como Cristóvão Colombo, temos de iniciar uma travessia. A retomada do crescimento depende da implementação de ideias consistentes. Nossas reservas internacionais serão de pouca valia nas mãos de um governante desmiolado. A escolha de um candidato maluco, com propostas delirantes (há várias opções no cardápio), poderá nos jogar no vazio. 

*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL DO BRASIL E PROFESSOR DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM

Estadão
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