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Sei lá, mil coisas

Aos abusos das operadoras devemos responder com uma regulação independente e enérgica

23 jul 2018 - 05h11
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A ministra Cármen Lúcia, de boa-fé, decidiu suspender provisoriamente a alteração já aprovada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que instituía regras para a comercialização de planos de saúde com franquia e coparticipação do usuário no pagamento de consultas e exames. Não se trata exatamente de uma novidade. É apenas um detalhamento nos critérios e limites para aplicação de normas que já eram previstas em uma resolução do Conselho de Saúde Suplementar de 1998. Hoje, a maioria dos beneficiários, cerca de 25 milhões de pessoas, já está em planos de saúde que preveem coparticipação e franquia. Mantidas constantes as demais condições, esta modalidade permite que o usuário pague mensalidades mais baixas, pela óbvia razão de que está assumindo parte do risco. 

Afora a disposição do Supremo Tribunal Federal (STF) em se indispor com uma agência regulatória, o que chama a atenção é a gongórica afirmação da ministra: "Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro". O arroubo da ministra ecoa um certo ressentimento que esteve em voga décadas atrás. A frase poderia estar escrita na História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que inspirou um dia os adolescentes protomarxistas a protestarem contra as agruras de um capitalismo sem alma, em que só o dinheiro é a medida das coisas. Tem um certo ar hippie, holístico, tão atual quanto os slogans da década de 70. Raul Seixas não faria melhor. 

Seria apenas uma curiosidade histórica, não fosse o fato de que a ministra expressa um pensamento muito encontradiço em nosso país. O capitalismo, entre nós, ainda é uma ideia em construção, em que pesem as evidências de que a humanidade não encontrou maneira mais eficaz de combater a pobreza. O lucro é quase um pecado, já que atenta contra a harmonia entre os homens. Podemos caminhar mais fundo nesta mesma senda e encontrar justificativas para coibir outros tipos de contratos sociais, como a cobrança de juros, por exemplo. Muitas religiões, desde tempos imemoriais, condenaram a remuneração do capital, com a justificativa de que os juros representam uma cobrança pelo tempo e o tempo, sendo uma criação divina, não é passível de comercialização. Na ponta antagônica à glamourização de conceitos abstratos, há quem advogue a adoção de soluções de mercado para tudo, até mesmo para assuntos relacionados à saúde. A revista The Economist defende há tempos a liberação da comercialização de órgãos humanos, o que é legalmente proibido em quase todo o mundo. O argumento é puramente utilitarista, ou, para os defensores da tese, mais humano. Há um déficit na doação de órgãos e milhares de pessoas morrem na fila esperando por um transplante. As filas para um transplante de rim crescem 7% ao ano nos EUA. O custo da operação de um transplante mais as despesas dos medicamentos imunodepressores para toda a sobrevida do paciente equivalem ao preço de apenas três anos de hemodiálise. Assim, conclui-se, legalizar a venda de órgãos ajudaria a equilibrar oferta e demanda e, desta forma, salvar vidas. Esta proposta pode, talvez, fazer algum sentido em um rincão da Noruega, mas sua aplicação em uma sociedade desigual como a nossa seria apenas um mergulho em direção à barbárie. 

Se a mercantilização da medicina tem limites, é óbvio que o tratamento médico é, sim, um serviço que precisa ser remunerado, dado que o Estado não tem recursos para garantir tratamentos gratuitos com qualidade. Aos abusos, numerosos e frequentes, das operadoras devemos responder com uma regulação independente e enérgica, que aumente a competição e fomente a transparência. Palavras de ordem fundamentalistas são de pouca serventia para a solução de problemas objetivos. 

*Economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP.

Estadão
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