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Protecionistas europeus usam 'fator Bolsonaro' para impedir acordo

Comissão Europeia, que se inclinava a fazer concessões ao Mercosul, sofreu pressão de grupos que usaram a eleição de Bolsonaro para justificar a rejeição a uma liberalização maior

21 nov 2018 - 16h50
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GENEBRA - A pressão protecionista europeia usa a eleição de Jair Bolsonaro e consegue frear um acordo com o Mercosul. Na terça-feira, os dois blocos não conseguiram aproximar posições e ficou cada vez mais distante a ideia de um acordo comercial antes do final do ano. Em cada uma das capitais, técnicos vão agora avaliar os próximos passos. Mas cresce a percepção de que o mais provável é de que o processo seja retomado apenas em 2019, já com o novo governo brasileiro no poder e abrindo uma fase de incertezas.

O Estado apurou que a Comissão Europeia tinha a clara intenção de ceder em certas áreas e oferecer ao Mercosul concessões no setor agrícola, o que permitiria um acordo. Mas ela foi surpreendida desde a semana passada com um forte lobby de grupos da sociedade civil, parlamentares e mesmo alguns governos que usaram a eleição de Bolsonaro para justificar a rejeição a uma liberalização maior.

Eles foram os mesmos grupos que, ao longo dos anos, usaram outros argumentos para impedir um tratado.

A pressão resultou em um congelamento da posição do bloco. A reunião que durou sete dias foi concluída sem que ficasse agendada qualquer novo encontro, nem entre técnicos e nem entre políticos. A ausência de um plano foi interpretado por observadores na capital europeia como sinal de que uma eventual retomada do processo ocorreria apenas no ano que vem.

A ideia original era de que as delegações chegassem a certos acordos nesta semana e que pontos mais delicados fossem deixados para uma decisão política. Para isso, uma cúpula seria organizada entre ministros de ambos os lados, agendada para o fim de semana. Eles então fechariam os últimos detalhes e preparariam o terreno para que os presidentes do Mercosul e da UE anunciassem o acordo durante a reunião do G-20, em Buenos Aires a partir do dia 30 de novembro.

Mas nada disso foi possível. Fontes em Bruxelas confirmaram ao Estado que o principal obstáculo foi a rejeição dos europeus em ceder em temas de interesse do Mercosul, principalmente no setor agrícola, de carnes e etanol. Um entendimento até o G-20, portanto, está descartado. Um dos negociadores do Mercosul ainda descreveu o clima como "frustrante" e que não ouviu, em toda a semana, qualquer tipo de concessão por parte dos europeus no setor agrícola.

A Comissão Europeia, num comunicado nesta quarta-feira, deixou claro que o obstáculo de um acordo vinha da pressão de seus atores internos. "A Comissão continua comprometida com uma conclusão de um acordo ambicioso e equilibrado com o Mercosul", disse um porta-voz da UE. "Apenas vamos concluir quando as condições certas forem atingidas e a Comissão tenha um resultado que possa ser apresentado como satisfatório aos estados membros, ao Parlamento e outros atores europeus", completou.

Bruxelas confirmou que não houve um progresso "decisivo e nem substancial" sobre os pontos de interesse da Europa e que não existe uma agenda clara de novos encontros. Depois do G-20, ainda existia uma última janela de oportunidade, até o dia 18 de dezembro, quando ocorre e cúpula do Mercosul. Mas poucos acreditam que algo possa ocorrer.

O temor na Comissão s era de que, com a nova orientação política em Brasilia, o acordo com a UE deixasse de ser prioridade e que uma aliança com os americanos seja estabelecida. O resultado, segundo os cálculos de negociadores em Bruxelas, seria a perda de espaço comercial e influência dos europeus na América do Sul.

Mas a intenção da Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, foi freada pelos interesses protecionistas dentro da Europa. Governos como o da França e Áustria deixaram claro que não aceitariam fazer novas concessões, apenas para garantir que um entendimento fosse fechado. Lobbistas de diversos setores agrícolas ainda aproveitaram a imagem questionada de Bolsonaro no exterior para também alertar que não estariam dispostos a fechar um acordo.

Desde a semana passada, a Comissão tem recebido cartas exigindo que o processo seja suspenso e o argumento é a eleição do novo presidente. No início de novembro, em nome de parlamentares de partidos socialistas, o francês Emmanuel Maurel emitiu uma carta para a Comissão Europeia cobrando uma suspensão do diálogo com o Mercosul.

"A Comissão sempre diz que os acordos de parceria da UE são baseados em valores democráticos, humanistas e progressivos", escreveu. "Bolsonaro representa o polo oposto de todos esses princípios básicos", acusou. "Os discursos dele (Bolsonaro), abertamente contra mulheres, homossexuais, pretos e populações nativas, sua política com base na força militar, suas gangues armadas intimidando, agindo de forma volta e assassinatos, suas declarações sobre a saída do Brasil do Acordo de Paris e a abertura da Amazônia para a agricultura são incompatíveis, ao meu ver e na visão dos democratas, com os valores da UE", declarou.

"Quando é que a Comissão anunciará a total paralisação das negociações com o Mercosul?", cobrou o deputado. "Ela vai declarar que, dada a situação, não haverá uma negociação separada com o Brasil?", atacou.

Minutas da reunião mantida na última sexta-feira entre os ministros europeus de Comércio ainda revelam a pressão feita pelas ONGs europeias do setor de proteção animal contra o acordo. "Sob as atuais condições do Brasil, os sinais relacionados à sociedade civil e à vontade política para cooperar são claramente negativas e, portanto, acreditamos que a UE não deve entrar em um compromisso de longo prazo com o Brasil, salvo se souber quais são as reais intenções do novo governo", indicou a minuta do encontro, citando as ONGs. "Precisamos de tempo para saber para onde o Brasil irá", declararam.

A última carta foi enviada no dia 15, com oito deputados do Parlamento Europeu fazendo a mesma solicitação. Liderados por membros do partido espanhol Podemos, o grupo apontou que, diante das posições de Bolsonaro em temas como meio ambiente e democracia, não poderia ser fechado um entendimento.

Segundo os deputados, fechar um entendimento com o novo governo brasileiro enviaria "uma mensagem ao público de que a UE não se importa com as mudanças climáticas e ambientais, e não se importa com elementos fundamentais da democracia".

Para o grupo, o novo governo estaria "em contradição com os valores europeus", além de ir contra as leis internacionais sobre Direitos Humanos e mesmo o Acordo de Paris.

"Solicitamos que as negociações Mercosul-UE sejam imediatamente suspensas até que a Comissão possa estar certa de que o Brasil atende a suas obrigações democráticas e obrigações ambientais internacionais", completaram os deputados.

No Mercosul, os argumentos foram interpretados como mais uma desculpa encontrada pelo setor agrícola europeu para impedir um acordo.

Ao longo dos últimos 18 anos, esse setor encontrou diferentes argumentos para suspender um entendimento, entre eles a corrupção no setor de carnes, o impeachment de Dilma Rousseff, a morte de Marielle Franco e agora a eleição de Bolsonaro.

Estadão
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