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Os trabalhos de Guedes

Os desafios de Hércules eram menores do que os que atormentam hoje nosso ministro da Economia

6 jul 2020 - 05h12
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Hércules matou a família e não foi ao cinema; foi ao oráculo. Em Delfos, recebeu como sentença a missão de realizar os tais 12 trabalhos, dos quais o mais leve era limpar, em um dia, os estábulos do rei Augias, onde viviam mil bois que defecavam no mesmo espaço há 30 anos. Esta foi a parte fácil para Hércules. A vida do ministro da Economia não está muito melhor.

Com seu passado ilibado na área criminal, o ministro recebeu apenas duas tarefas. A principal é matar a hidra de nove cabeças que tornou o fundamentalismo liberal o seu credo dogmático. Não deve ser fácil fazer política fiscal expansionista para quem acredita que o Estado é intrinsecamente nocivo e que o setor privado tende a ocupar todo o espaço deixado pelo corte dos gastos públicos, como se a decisão dos investimentos privados obedecesse a alguma lei da termodinâmica que regula a expansão dos gases.

A preocupação maior, evidentemente, é o crescimento do déficit e, consequentemente, da dívida pública. A tese convencional é de que, de alguma forma, em algum momento, a dívida que está sendo acumulada hoje terá de ser totalmente paga, como se o Juízo Final valesse também para os países e os Tesouros Nacionais. Na ausência de ajuste fiscal, o temor de um calote no futuro, segue o argumento, elevará as taxas de juros, o que agrava o quadro do desequilíbrio das contas públicas. Mas não é bem assim que se observa na prática.

De acordo com estudo do Ministério da Fazenda divulgado em 2/7 (Análise do Impacto Fiscal do Enfrentamento à Covid-19), o estrago em 2020 nas contas públicas será imenso, com aumento das despesas na ordem de R$ 508 bilhões, o que deve catapultar o déficit primário para 12% do PIB, empurrando a relação dívida/PIB para quase 100%. Ainda assim, no meio desta hecatombe, a taxa de juros dos títulos públicos de cinco anos está em torno de 5,8%, mais baixa que os 6,4% do fim do ano passado. Ou seja, em que pese o desarranjo das contas públicas, as taxas caíram. Isso porque a lógica que prevalece para empresas privadas não se aplica para a dívida pública. Se uma empresa vai mal das pernas, o mercado cobra taxas altas para carregar os seus papéis. Na dívida pública, dado que o próprio devedor pode emitir a moeda que liquida sua obrigação, os juros seguem a estimativa para a tendência da taxa Selic, que será, por sua vez, comandada pela expectativa de inflação. A queda dos juros, portanto, reflete a constatação de que a inflação, para os padrões brasileiros, está morta. Não porque exista confiança (sempre ela) na gestão da dívida, mas simplesmente porque vivemos uma recessão ciclópica, algo que não está descrito nem mesmo na mitologia grega. A tarefa de Paulo Guedes é mais do que hercúlea. Uma fuga para a frente, com aumento nos gastos públicos de investimento, é muito para ele.

A segunda tarefa é convencer Bolsonaro de que para fazer política econômica é preciso fazer política. As tais reformas exigem coordenação, empenho e posicionamento estratégico. O presidente não tem nada disso. Sua adesão ao liberalismo do ministro é flácida e vacilante. O foco é a sobrevivência política. Nestas condições, o melhor que se pode esperar a esta altura é que a equipe econômica se deixe dominar pelo pragmatismo e entenda que estabilizar a relação dívida/PIB é o máximo a ser almejado. Tentar reintroduzir a tese da "austeridade expansionista" a qualquer custo poderá gerar um desastre ainda maior.

Alterar a natureza beligerante do presidente é mais difícil que matar o gigante Gerião, que tinha seis braços e seis asas.

Hércules completou as 12 tarefas, cumpriu a penitência e virou imortal. Mas seus desafios eram menores do que os que atormentam hoje Paulo Guedes. Que Zeus nos proteja.

*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM

Estadão
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