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O preço do medo

Sem recuperação da renda e do emprego, temos encontro marcado logo adiante com alguma besta-fera

26 out 2020 - 05h10
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Em O Livro dos Seres Imaginários, Jorge Luis Borges descreve 116 criaturas que foram geradas na imaginação dos homens e se perpetuaram na literatura universal. Há entidades simpáticas como os elfos, clássicas como o unicórnio ou graciosas como as fadas. Temos, também, o Asno de Três Patas, entre tantos outros. Em comum, apenas o fato de que um dia alguém cogitou de que eles existiam de verdade. Os economistas também são inclinados a acreditar no que não existe. Durante décadas pensou-se que a inflação era um fenômeno puramente monetário causado pela expansão da oferta de moeda. A experiência heterodoxa após a crise financeira de 2008 fez com que a base monetária nos Estados Unidos e na Europa se expandisse mais de dez vezes, sem nenhum impacto sobre a inflação, como mostra André Lara Resende em Consenso e Contrassenso (Portfolio-Penguin, 2020). Ainda assim, a tese monetarista ainda encanta alguns analistas, que se recusam a aceitar que as harpias não existem.

Hoje, analogamente, vivemos o temor de que o descontrole fiscal possa levar a uma insolvência do setor público. Um exame mais detalhado, porém, revelará que não há razão para que um governo que deve na sua própria moeda não tenha dinheiro para honrar sua dívida. O argumento contrário apela a uma falsa analogia com uma empresa ou uma família.

De fato, quem deve muito terá dificuldades para rolar sua dívida em algum momento. Mas a mesma lógica não se aplica ao Tesouro. Um aumento dos gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial. O mercado poderá sempre pressionar por taxas de juros mais altas, como faz agora para os prazos longos. Mas os juros mais altos refletem, antes, as agruras de um governo que não consegue definir o Orçamento para 2021, que teme uma crise política no rastro do fim do auxílio emergencial e que fracassa no encaminhamento das reformas administrativa e tributária. Isso sem falar no risco da contaminação do IPCA pelo comportamento do IGPM, que acumula variação anual de 17,9% até setembro. A diferença entre a taxa anual dos dois índices hoje é de 14,8 pontos porcentuais, a mais alta desde abril de 2003. Se a economia andar mais rápido, em algum momento, a tendência é de que esse hiato se estreite. O risco da insolvência é apenas um ser imaginário.

No meio desta cacofonia, falar em insolvência é apenas mais um ruído desnecessário. A questão é adivinhar a trajetória da taxa Selic. Mas, argumenta-se, o mercado pode ser vítima de uma profecia autorrealizável. Se todos pensam que haverá insolvência, ninguém comprará papéis públicos. Mas, como a cada compra de papel privado corresponde uma venda, isso apenas tornará os papéis privados muito caros e, no fim do dia, as reservas bancárias serão acrescidas de recursos ociosos, que não terão opção a não ser a compra de papéis públicos, sob pena de a taxa Selic tender a zero.

E a fuga de capital? O câmbio flexível é um bom antídoto. Quem compraria dólar a R$ 10,98, que é o preço atualizado pela inflação da cotação de R$ 3,95 de outubro de 2002, quando caiu a ficha de que Lula seria presidente? Certamente, haveria menor interesse.

Disso tudo não decorre que o gasto público seja ilimitado. O aumento crescente da dívida, mesmo sem risco de insolvência, causaria enormes distorções na economia. Mas o fundamentalismo fiscal não é garantia para nada. Muito mais que de um teto de gastos, o País precisa de um modelo de crescimento. Sem recuperação da renda e do emprego, temos encontro marcado logo adiante com alguma besta-fera - que desta vez não será imaginária.

ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM 

Estadão
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