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É só dinheiro

Se não vencer as armadilhas que o aguardam, o novo governo não poderá contar com a fidelidade do mercado

15 out 2018 - 05h11
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O mercado financeiro não é dado a filigranas. Circunlóquios e enredos sinuosos cabem melhor na academia e entre os analistas políticos, sempre evasivos e cautelosos. No mercado, quem ganha continua no jogo. Quem perde sai. Mas há também uma certa complexidade, de outra ordem, que o transforma num jogo de espelhos. Cada operador tem diante de si uma dupla tarefa: antecipar o que vai acontecer e também prever de que forma os outros operadores vão reagir - para fazer o mesmo, mas antes. Há várias semanas, formou-se o consenso de que a subida da Bolsa e a queda do dólar seriam as reações de um cenário de vitória do candidato Jair Bolsonaro. Não se trata de manifestar seu voto através dos preços. Não se trata de convicção íntima. Não há um alto-comando que defina quando atacar. Não há ideologia, não há valores cívicos em jogo. Trata-se de ganhar dinheiro.

Deste cardápio faz parte uma boa dose de exagero. O mercado é dado a excessos. Foi o que vimos na semana passada com a cotação do dólar. Um modelo econométrico simples mostra que a cotação do dólar pode ser descrita como uma função da cotação de moedas de outros países emergentes. Levando em conta as cotações diárias dos últimos dez anos, o modelo tem um poder explicativo de 95,4%, ou seja, a quase totalidade da variação da nossa moeda no longo prazo pode ser relacionada ao que acontece no cenário internacional. Desde o começo do ano a cotação do real esteve sempre acima do valor precificado pelo modelo. Faz sentido. Com a incerteza das eleições presidenciais, era razoável que o real fosse negociado com um ágio em relação às outras moedas. Com o anúncio da vitória no primeiro turno do candidato do PSL, o quadro foi revertido. Na semana passada, pela primeira vez, o prêmio se transformou em deságio, indicando que o real está abaixo do valor indicado pelo cenário internacional. O mercado exorbitou. É como se todo o risco político associado à enorme transformação que se avizinha não existisse mais. É muito, é demais.

Não demorará para o mercado perceber que um eventual governo Bolsonaro terá de se defrontar com enormes adversidades. O primeiro obstáculo será superar as grandes diferenças que existem no próprio programa do candidato. Não há consenso sobre a amplitude da privatização nem acordo sobre como deveria ser uma reforma da Previdência. Nos dois temas é fácil perceber um conflito latente entre a visão dirigista e corporativista que predominou nos governos militares e uma abordagem liberal, maximalista e algo ingênua. Vencida essa etapa, sobrevirão os problemas de articulação política. É bom lembrar que a oposição no novo Congresso terá quase o mesmo número de representantes, o que demanda uma habilidade de negociação que Bolsonaro ainda não demonstrou, até porque sua força hoje decorre da radicalidade de suas ideias e gestos, algo que pode funcionar durante a campanha, mas será contraproducente no exercício do poder. Tudo somado, o que se afigura é um governo fraco para lidar com os enormes desafios econômicos que temos.

A comemoração do mercado hoje não significa endosso nem apoio. Se o novo governo não se desenredar das armadilhas que o aguardam não poderá contar com a fidelidade dos operadores. Dificuldades na aprovação urgente de uma reforma da Previdência ou na consecução de um programa de desestatização estimularão apenas a reversão de posições. No momento, ganham os comprados em Bolsa e vendidos em dólar. Se o novo governo se mostrar incapaz de levar adiante as reformas que o mercado espera, ganharão os que trocarem de mão e ficarem comprados em dólar e vendidos em Bolsa. Nada pessoal. Não é amor. É só dinheiro.

* ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL DO BRASIL E PROFESSOR DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM

Estadão
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