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Desmonte no teto de gastos cria armadilha fiscal para o próximo presidente

Para especialistas, ao elevar o Auxílio Brasil para R$ 400 sem cortar outras despesas, governo cria uma bomba fiscal para quem for eleito no ano que vem

25 out 2021 - 17h00
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BRASÍLIA - Em nome de sua tentativa de reeleição, o governo Jair Bolsonaro chancelou o desmonte na regra do teto de gastos - que limita o crescimento das despesas do governo à inflação. Mas pode acabar criando uma armadilha fiscal a ser desarmada pelo próximo presidente - que pode ser o próprio Bolsonaro - já em janeiro de 2023.

Quase metade do valor de ao menos R$ 400 a ser pago no Auxílio Brasil, novo programa social substituto do Bolsa Família, será em caráter temporário e acabará junto com a atual gestão, deixando famílias já em situação vulnerável expostas a um corte abrupto na renda domiciliar.

Especialistas apontam que dificilmente o próximo presidente conseguirá reduzir à metade o valor do benefício no início do governo, criando uma pressão para que o gasto se torne permanente.

O governo e lideranças do Centrão, com aval do ministro da Fazenda, Paulo Guedes, patrocinaram uma mudança na regra do teto para abrir um espaço de mais de R$ 80 bilhões no Orçamento. Mas esse espaço não deve ir apenas para o Auxílio Brasil - será tomado por outras despesas.

Além da elevação dos gastos, a percepção de maior risco à sustentabilidade das contas públicas vai tornar mais cara a conta de juros da dívida pública, uma combinação de fatores que pode ser converter em uma bomba fiscal para o sucessor de Bolsonaro.

Juros

Com o Auxílio Brasil turbinado e a certeza de uma injeção de gastos em 2022, o Banco Central deve precisar subir mais a taxa básica de juros, a Selic, para manter as rédeas sobre a inflação. Economistas já projetam que a Selic irá para algo mais próximo de 11%, e essa taxa norteia boa parte do custo da dívida pública.

No Ministério da Economia, até integrantes da equipe econômica apontam reservadamente que, com a quebra do teto, o governo vai acabar tendo de pagar dois Auxílios Brasil: às famílias beneficiárias e um outro gerado pelo custo maior dos juros da dívida.

O economista-chefe da XP investimentos, Caio Megale, estima que a elevação adicional da Selic para o patamar de 11% deve custar cerca de R$ 70 bilhões em despesas de juros em 12 meses. "São dois programas Bolsa Família", diz.

Para Megale, que já integrou o time de Guedes, as novas projeções da XP indicam que a mudança no regime fiscal acabará sendo contraproducente, pois resultará numa taxa de câmbio mais depreciada e uma inflação mais alta. A combinação de juros e inflação elevada deve frear ainda mais o crescimento e afetar a renda das famílias inicialmente beneficiadas com o aumento das transferências.

Com o dólar mais alto, perto de R$ 5,70, se espera para os próximos dias uma nova rodada de elevação dos preços dos combustíveis pela Petrobras. O próprio presidente Jair Bolsonaro já se antecipou ao problema e avisou os seus apoiadores. Por isso a decisão de garantir também o auxílio diesel, igualmente em R$ 400 mensais, com o espaço aberto no Orçamento pela decisão de afrouxar o teto de gastos.

Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional e hoje diretor da ASA Investments, lembra que a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) abandonou os pilares da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2014, no intuito de se reeleger, e teve sucesso em garantir mais um mandato, mas acabou jogando o Brasil em uma recessão profunda. "Já vimos esse filme."

Com a antecipação dos embates em torno do teto, Kawall acredita que 2023 será menos incerto, mas avalia que dificilmente o próximo presidente conseguirá reduzir o Auxílio Brasil a menos de R$ 400.

"Isso significa que a gente tem agora um crescimento de gasto em relação ao PIB que virou permanente. Você acha que alguém corta o Bolsa Família? Obviamente, não. É um componente de gasto que não vai mais cair", afirma. Para ele, é provável que o sucessor de Bolsonaro, ou ele mesmo em eventual segundo mandato, tenha de aumentar impostos no início do governo para tentar reequilibrar as contas.

Compromisso

Especialistas apontam que o arcabouço fiscal é essencial, mas o mais relevante é o condutor da política estar comprometido com seu cumprimento. O desmonte do teto ficou claro depois que Guedes disse que precisava de uma "licença para gastar" para bancar o Auxílio no valor determinado por Bolsonaro.

O clima no mercado é de o que teto morreu ao deixar de ser referência como âncora da política fiscal. Em vez de restringir a despesa e incentivar a revisão de outras políticas menos eficientes para abrir espaço a novos programas, mudaram a regra para que coubessem mais gastos sem olhar para o que já existe hoje.

Um dos criadores do teto de gastos, o pesquisador do Insper Marcos Mendes, diz que, se o próximo presidente estiver comprometido com a responsabilidade fiscal, terá de começar do zero. "O mercado não vai viver em eterna crise, se afundando todo dia. Vai se acomodar em patamar pior. Mas não é por isso que está resolvido", afirma.

Segundo ele, o desenvolvimento daqui até o final do ano vai depender de uma política de contenção de danos, com articulação de uma política de defesa do Tesouro e resistência para evitar aprovação de novos gastos.

Kawall, porém, tem preocupação com a capacidade de resistência da equipe econômica a mais gastos daqui para a frente. Dos 23 ministérios do governo, apenas um deles briga para fechar o cofre, e para isso precisa ter instrumentos.

"Não adianta estar na trincheira e não ter a arma na mão para a briga. Quem estava na trincheira era o Funchal (Bruno Funchal, secretário especial de Tesouro e Orçamento, que pediu demissão). O general está no Palácio do Planalto e o que fez foi tirar a arma da mão", diz o economista. Segundo ele, a mudança deixa a equipe econômica "vendida ao inimigo".

Estadão
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