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Com o que devemos nos preocupar na defesa da livre concorrência?

Combater somente os cartéis, célebre exemplo de infração contra a ordem econômica, não é suficiente para garantir a livre concorrência

3 mar 2021 - 04h10
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Os cartéis são o mais célebre exemplo de infração contra a ordem econômica e, por muitos, considerada também a mais gravosa. No Brasil, essa prática é considerada um crime e, não por acaso, para a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) seu combate deve ser prioridade das autoridades de defesa da concorrência. Consequência disso é que entre 2015 e 2020 foram julgados pelo Comitê Administrativo de Defesa Econômica (Cade) 100 processos administrativos tratando de cartéis ante apenas 28 referentes a condutas unilaterais. Nesse cenário, em que todas as atenções se voltam ao cartel, uma pergunta parece importante: com o que mais devemos nos preocupar na defesa da concorrência?

Nas últimas semanas, um caso tem chamado a atenção no meio econômico: as investigações sobre práticas anticompetitivas do Google. Além do Brasil, Estados Unidos, Austrália, França e outros países já investigam as condutas do buscador, com a possibilidade de aplicação de pesadas sanções ao gigante digital. O caso é um desafio para a defesa da concorrência, já que esbarra em temas como abuso de posição dominante, direitos autorais, privacidade e liberdade de expressão. Esse, que parece, se não o desafio do século, certamente o desafio da década, não é um cartel e parece um indicativo de mudança do eixo de preocupação para o campo das chamadas condutas unilaterais.

Exemplos não faltam: cláusulas de exclusividade, programas de desconto, fixação de preço de revenda, recusa de contratar e discriminação de preços são apenas alguns dos nomes nesse rol aberto e sempre incrementado pela galopante criatividade dos agentes econômicos nas estratégias para evitar os custos inerentes à concorrência. Essas condutas permaneceram fora do foco de atenção das autoridades por uma razão simples: elas nem sempre resultam em prejuízos à livre concorrência e, por serem eventualmente benéficas, exigem um padrão de análise diferente.

A possibilidade de eficiências, no entanto, não pode ser sinônimo de carta branca. Condutas unilaterais podem ser extremamente danosas para a economia. Além do caso Google, um bom exemplo foi a condenação do Facebook na Alemanha, pelo uso indevido de dados coletados em outros aplicativos, como o WhatsApp. No Brasil, foi uma investigação de conduta unilateral que resultou na celebração de Termos de Cessação de Conduta, em que a Petrobrás se comprometeu a abrir o mercado brasileiro de gás natural.

Isso não quer dizer, ressalte-se, que os cartéis deixaram de ser uma preocupação ou que estejamos diante de um relaxamento em sua repressão. Longe disso: em 2020, houve 13 condenações de cartel no Cade, que arrecadaram mais de R$ 129 milhões em multas para os cofres públicos. Em 2021, das três condenações decididas pelo Conselho, duas são referentes a cartéis. Além disso, esse ilícito também tem sido objeto de novas investigações, como o Inquérito aberto pelo Cade no setor de combustíveis. Há também ações educativas da autoridade, caso do workshop realizado há pouco em parceria com a OCDE e direcionado a servidores públicos de todas as esferas de governo em que se abordou a promoção de competitividade em compras públicas.

Sem deixar de lado o combate a cartéis, atividade na qual o empenho da autoridade brasileira de defesa da concorrência já é reconhecido internacionalmente, parece ser a hora de enfrentar outros desafios. Retornando à pergunta que abriu esse texto, há muito com o que se preocupar na defesa da concorrência, além dos acordos entre concorrentes, e, se é verdade que a justiça que tarda, falha, é mais que hora de aprofundar o combate a outros tipos de infração.

*SUPERINTENDENTE-GERAL DO CADE

Estadão
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