Camila Pitanga conta como tem conciliado novelas, cinema e projetos que envolvem direitos das mulheres e a luta antirracista
A atriz está na TV e nas telonas com personagens que viraram febre entre a audiência
Camila Pitanga quase não teve pausa neste frenético 2025. Novelas, filmes no cinema e compromissos internacionais — assim mesmo, tudo no plural — fizeram parte da agitada agenda de seu primeiro semestre.
Após o estrondoso sucesso de “Beleza Fatal”, que foi ao ar no streaming, na HBO Max, e na TV aberta, na Band, ela estreou no fim de abril, em uma participação especial, na novela “Dona de Mim”, na Globo. Por quase duas semanas, ficou no ar nas duas emissoras concomitantemente, algo que seria impensável uns anos atrás.
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No cinema, estrela o longa “Malês”, dirigido por seu pai, Antonio Pitanga, que retrata a revolução organizada por negros escravizados em Salvador, na Bahia, em 1835. “É uma revisão da História, o olhar preto sobre o que houve no Brasil. Quando trazemos esse viés, a gente não vê escravizados, vê pessoas e vidas. Ali, mostramos que negros, ainda que vivendo na maior indigência, tinham estratégia, coragem e ousadia”, ela diz sobre a obra.
Também voltou às telonas e streamings com a comédia Saneamento Básico, de 2007, relançado na esteira do sucesso internacional de Wagner Moura e Fernanda Torres, que compõem o elenco. É Pitanga para tudo que é lado.
O digital é importante e necessário para que possamos repensar como se analisa um sucesso. Mas meu uso é moderado: me coloco limites porque também gosto de olho no olho. E procuro jamais me deixar ser consumida. Gosto de ler o que falam, de provocar discussões, mas ainda acredito na troca de calor humano. Mas as redes também são boas aliadas para marcar um encontro, é ou não é?
Uma novela aqui, um discurso no exterior ali
Lá fora, aliás, Camila tem feito bonito como embaixadora da ONU Mulheres Brasil, desde 2015. Em Cannes, durante edição do festival que premiou Wagner Moura pelo papel em “O Agente Secreto”, falou no painel “Vozes da maioria no cinema: os 54% negros do Brasil não podem esperar”, descrevendo as urgências de nosso tempo. A ideia ali era mostrar uma pesquisa sobre o fato de mulheres negras seguirem à margem do audiovisual. “Elas são a base da pirâmide econômica do Brasil, mas ganham metade da renda dos seus pares brancos. O perfil das lideranças nas produtoras audiovisuais brasileiras de grande porte ainda não reflete a presença de mulheres, muito menos as negras. E os dados também indicam que as mulheres e pessoas negras estão pouco satisfeitas com os créditos que receberam nas obras audiovisuais, assim como o equilíbrio entre vida e trabalho”, pontua.
Camila quer apontar caminhos, parcerias e soluções concretas para que esse cenário mude o quanto antes. Pensando nisso, ela explica, a ONU Mulheres tem mobilizado o mercado brasileiro por meio de uma Aliança por Mais Mulheres no Audiovisual, como ponto de partida para grandes mudanças. “É a construção conjunta de uma rede potente, que articule diferentes profissionais e agentes do setor, em busca de mais oportunidades, mais igualdade, mais dignidade. Falar da presença das mulheres nas mídias, para mim, não é apenas olhar para a forma como estamos retratadas nas telas, mas também sobre o que isso implica”, diz.
Como o nome do painel, Camila realmente não é de esperar. Garante que não se conforma com a vida confortável que leva. “Fui criada por Antonio Pitanga, minha mãe é Vera Lúcia Manhães e minha mãe do coração é Benedita da Silva. É natural que entenda que não vou ficar no meu conforto da casa boa sem olhar pela janela e ver esse Brasil real. O mundo lá fora me impacta de verdade”, diz, enfática.
Esteve também no 1º Fórum Internacional da Mulher e os Desafios do Desenvolvimento, na Universidade de Cabo Verde, numa mesa sobre representação da mulher no audiovisual. “Como artista, produtora e mulher negra, sei o quanto é essencial que nossas meninas nos enxerguem no mundo”, ela diz. A mudança, segundo ela, começa na escuta, com rede e ação coletiva sobre uma história que não é só de dor.
Protagonismo negro
Em Cannes, a empolgação brasileira foi generalizada. Foi a primeira vez de Camila no Festival e é o ano do Brasil na França. “Não podia ter sido mais especial. Na Croisette [famoso calçadão à beira-mar na cidade francesa], como se fosse um bloco de carnaval, celebrando o cinema brasileiro!”. Além de todo o frisson em torno de “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, Camila participou da Semana da Crítica (La Semaine de La Critique) com o curta-metragem “Samba Infinito”, de Leonardo Martinelli, no qual atua. “Me senti nas duas pontas: exaltando o mainstream e ainda colaborando com o movimento de renovação. Foi realmente simbólico”, ela diz, empolgada.
O mesmo foco que o Brasil está tendo lá fora no cinema vale para a janela de possibilidades de novelas no streaming. “O sucesso de ‘Beleza Fatal’ foi retumbante, mostra que o público quer ver novas perspectivas, histórias plurais, potentes, sensíveis, divertidas e inéditas”, ela diz, lembrando que nosso jeito único de fazer novelas deixa o mercado mais aquecido. “É fruto de talento, trabalho duro e, sobretudo, da resistência histórica de quem faz arte neste país”, completa.
Mas faz questão de frisar que, para consolidar esse movimento, é fundamental haver a regulamentação do audiovisual. “Temos uma caminhada necessária a fazer no Congresso e no Senado. Para haver um grande pacto de continuidade, de fomento e haver mais e mais produções de sucesso em Língua Portuguesa, empregando brasileiros e encantando o mundo”.
Um pouquinho de festa, um pouquinho de consciência política
A comemoração tem sempre um olho aberto no histórico de segregação. “Vir de uma família preta é vir de luta. Todas as facilidades de acesso que possam ter vindo pelo meu pai vieram com cobranças e comparações”, ela garante. Analisa também com reservas o fato de, em 1995, ter estado no primeiro núcleo negro de novelas, em “A Próxima Vítima”. Na época, a trama foi elogiada por ser a primeira a colocar uma família de classe média negra no ar em horário nobre. “Era só uma família negra apartada, o que acabava por repetir o mito da democracia racial”, reflete, citando o documentário “A Negação do Brasil”, de Joel Zito Araújo.
É também à criação em família que atribui a liberdade em relação ao próprio corpo e sexualidade, que não dá espaço para discursos autoritários. “Tomo de empréstimo palavras de Nêgo Bispo, um grande contador de histórias, ‘Nossas trajetórias nos movem, nossa ancestralidade nos guia’. É por aí: eu sou e me reconheço na minha ancestralidade. Guio meus passos sem perder de vista a copa dessa árvore frondosa e abundante que é a minha família, o meu baobá.”
Apesar das falas duras e necessárias, traz também o viés positivo das mudanças que presenciou desde o começo da carreira, há mais de 30 anos. Garante, por exemplo, que o quadro melhorou desde que estreou na TV, em 1993, na novela “Sex Appeal”, ao lado de atrizes como Carol Dieckmmann e Luana Piovani. Hoje, Bella Campos e Taís Araújo protagonizam “Vale Tudo”, e Duda Santos, “Garota do Momento”. É um trio de mulheres negras em papeis de destaque no ar. Camila fecha o quarteto com sua vilã Lola, em “Beleza Fatal”. Ela chama de “pretagonismo”.
De Bebel para Lola, uma era de memes
Os Lolovers da personagem de “Beleza Fatal” se encarregaram de levar a palavra de Lola para o mundo da internet. O meme, para Camila, é um jeito de reescrever a trama — o pós-obra, que mistura comédia e mundo real. “A novela hoje é vista no streaming, no Tik Tok, de muitas maneiras. O sucesso de ‘Beleza Fatal’, que não estava inicialmente na TV aberta, foi sentido por mim nas ruas. Virou pauta. É para se celebrar os novos tempos, mas também é necessário entender as novas formas de consumo”, pondera.
Bombar nas redes não é exatamente uma novidade para ela, que vê sua Bebel, de “Paraíso Tropical”, em cortes de vídeo divertidos desde que a novela foi ao ar, em 2007. Quem não se lembra da clássica cena em que o Olavo de Wagner Moura diz que amava aquela “cachorra”? “Bebel e Lola são bons exemplos de como o entretenimento pode provocar discussões que em princípio parecem rasas, mas não são. A Bebel mostrava a batalha de uma mulher por uma vida melhor, com graça e humor. E envolveu as pessoas. Já a Lola, mesmo sendo uma vilã, provocou outras discussões como o uso excessivo da estética. O audiovisual de massa deixa as discussões latentes e na boca do povo. É lindo ver”, celebra.
A personagem de “Beleza Fatal”, uma vilã sem escrúpulos que usa as pessoas, também foi fonte de aprendizado. Camila mergulhou em suas fragilidades e se divertiu com seu humor ácido e debochado. “Mas, procurando sua humanidade, encontrei uma imensa solidão. De que adianta ter carro do ano, corpo perfeito e não confiar em ninguém? Qual o preço por tanta ambição? Até onde a busca pela perfeição faz sentido?”, questiona.
Em tempos de redes sociais, de comparações impossíveis, de inteligência artificial, de autocobrança, a Lola de Camila mostra que nenhum extremo é saudável. “O aprendizado é o que ela provoca nas pessoas, mesmo que para isso tenhamos que rir desconfortáveis, não é, my love?”, debocha com o bordão da personagem. Novelas e o audiovisual entenderam que o brasileiro é plural e existe com força e com potencial, com muito o que dizer. “A gente inspira. É uma boa virada”, finaliza. É mesmo.