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Saga dos judeus ganha biografia monumental de Lira Neto

'Arrancados da Terra' revela, com apuração profunda e envolvente, quem são os judeus expulsos da Península Ibérica pela Santa Inquisição e perseguidos também ao seguirem para a Holanda, a Jerusalém do Norte, e ao Brasil, a Jerusalém dos Trópicos

25 fev 2021 - 05h10
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Condenado por praticar o judaísmo em segredo, Gaspar Rodrigues Nunes partiu em fila com outros sentenciados por crimes contra a Igreja Católica na manhã de 23 de fevereiro de 1597. Caminhava descalço, usando a túnica de linho tingido de amarelo para não haver dúvidas de suas traições à Santa Sé. Ao chegar ao Terreiro do Paço, à margem do Tejo, foram recebidos por populares ocupando seus lugares na plateia à espera do espetáculo dos aflitos. Assim que as sentenças fossem lidas e os acusados fizessem suas confissões, alguns seriam açoitados, outros exilados, parte torturada, uma porção deles desterrada e as almas mais delituosas da fé em Cristo seriam queimadas na fogueira da Santa Inquisição.

Gaspar Nunes, na impressionante reconstrução histórica feita pelo biógrafo Lira Neto, não é apenas um homem, mas um povo inteiro. Sua mulher Filipa, também judia, foi presa, torturada, separada dos filhos e encarcerada pelos carrascos do Santo Ofício por três anos depois de, já no cárcere, ser flagrada guardando jejum às segundas e quintas e jamais se benzendo às 18h, a sagrada hora da Ave-maria. Por negar-se a denunciar todos os judeus que conhecia, deitou sem roupas em um potro para ter os pulsos e os calcanhares amarrados à máquina de tortura. Antes de ser dilacerada, implorou e recebeu a chance de falar das judaizações realizadas com o marido havia 12 anos. Ao ser solta, segundo médicos enviados para avaliá-la, se tornou uma "mentecapta", absorta na tristeza e dona de uma frase intrigante: "Eu tenho um fogo e um bicho dentro do meu coração".

A história existe mais quando há nomes e sobrenomes, algo que a obstinação detetivesca de Lira Neto identifica, persegue, traduz, sustenta e entrelaça em sua narrativa sobre a diáspora judaica a partir dos séculos 16 e 17, quando Portugal e Espanha estão unificados sob as vontades de um mesmo reino e de uma religião absoluta e inconciliável com qualquer pensamento à parte de sua doutrina: a Igreja Católica.

Arrancados da Terra, livro que sai pela editora Companhia das Letras, trilha o êxodo do povo sefardita, os judeus ibéricos, em busca de sua terra prometida desde o antissemitismo que os expulsa ou escraviza na península unificada até a controversa chegada de 23 deles às costas da terra que seria um dia Nova York. Um caminho que perpassa a Jerusalém do Norte, como Amsterdã era vista por muitos por sua suposta maior permissividade religiosa, suposta até as decapitações em praça pública sob os mesmos beneplácitos da fé dos portugueses e espanhóis, e a Jerusalém dos Trópicos, como o Brasil é chamado durante o período em que a empresa bélica e de exploração comercial Companhia das Índias Ocidentais envia Maurício de Nassau e seus homens para a ocupação de parte da região que seria um dia o Nordeste brasileiro.

A intolerância, o isolamento e as punições surgiram em todas as paragens. Injúrias desde os primeiros anos cristãos criaram narrativas carregadas de mitologias que os retratavam, por exemplo, como integrantes de uma seita satânica e secreta capaz de sacrificar crianças católicas em rituais sanguinários. O povo que um dia havia crucificado Jesus Cristo - segundo uma construção de ódio que parecia ter raízes em toda a terra em que pisasse ao menos um cristão - não merecia a paz. E não era só. Ao serem proibidos de possuir terras, e isso se vê talvez nas camada mais profundas do livro, os judeus desenvolvem um poderio no setor comercial a ponto de se tornarem ameaças ao poder constituído entrelaçado por Estado e Igreja, algo que só reforçava a necessidade de decretar que eles eram inimigos mortais não por serem bons contando dinheiro, mas por serem hereges. Satanizá-los era mais eficiente do que aceitá-los como concorrentes comerciais.

As micro-histórias, como diz Lira Neto, formam o tecido da macro-história e as angústias da diáspora judaica deixam de ser apenas de um tempo e de um povo para se tornarem de hoje e do mundo. "Não se trata de uma história em que haja mocinho e bandidos, entre o próprio povo judeu há contradições e ambivalências. Mas não é por acaso que, ao narrá-la, decidi dedicar o livro a todo apátrida, exilado, desterrado e arrancado de sua terra. Essa história não ficou lá atrás, ela se reafirma todo o tempo. Venezuelanos e africanos sofrem neste momento nas fronteiras com o Brasil."

Lira fez o livro em Portugal, onde vive há dois anos. Boa parte de seu trabalho de pesquisa se deu na Torre do Tombo, em Lisboa, onde estão, por exemplo, documentos sobre a Inquisição que tiveram de ser lidos muitas vezes às avessas por terem sido escritos por representantes da Santa Sé nada confiáveis ao relatarem as falas de seus torturados. Ao final de uma história sem fim, e que o pensamento de leitor pede por continuação, há a passagem de menor comprovação. Uma embarcação com 23 judeus saída do Recife teria se desorientado e terminado por ancorar às costas das terras que seriam um dia Nova York. Ao se aproximar da passagem, Lira assume um tom de verbos em condicional, mas não deixa de contar aquilo que ele mesmo vai contestar em seu "pós-escrito". É uma pensamento biográfico que ele mesmo, um cearense de ancestrais judeus desterrado primeiro ao viver em São Paulo e agora em Portugal, usa para não desterrar nem mesmo a dúvida.

Arrancados da Terra

Autor: Lira Neto

Editora: Companhia das Letras (424 páginas)

R$ 84,90 (impresso)

R$ 39,90 (e-book)

Estadão
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