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Para ser um tradutor, é preciso ser um acrobata da língua

Enquanto 'coautor' do texto, o tradutor reflete as suas escolhas e imprime a sua assinatura

24 out 2020 - 05h10
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No dia 30 de setembro, comemorou-se o dia do tradutor, que tem como santo padroeiro São Jerônimo, responsável pela tradução da Bíblia do grego antigo e do hebraico para o latim - tornou assim o texto sagrado acessível a um número maior de pessoas. A tarefa do tradutor seria, de fato, trazer à luz algo que estava no escuro. Muitos estudiosos acreditam que o tradutor é o primeiro a dar as boas-vindas ao estrangeiro, ao se aproximar dele e ao introduzi-lo a uma outra cultura, que obviamente se amplia com esse diálogo.

A tarefa do tradutor, apesar dos inúmeros estudos a respeito dela, parece ainda hoje ser desconhecida ou incompreendida por parte dos leitores. O tradutor francês Dominique Nédellec lembra que, antes de falar para estudantes lusófonos sobre os livros traduzidos por ele do português para o francês, teve que "fazer uma apresentação geral da profissão-tradutor para as turmas de literatura. Como explicar a esses colegiais no que consiste meu ofício? Como captar imediatamente sua atenção? Passador, falsário, impostor, camaleão, raposa, bode expiatório... Sim, é claro. Mas, o que mais? Brice Matthieussent: 'Para ser um bom tradutor, é preciso ser um acrobata da língua, ser flexível no manejo das palavras. Sempre surgem situações embaraçosas que exigem um bocado de agilidade'. A ideia é sedutora: o tradutor é um acrobata... Mas de que tipo? Cremnóbata? Oríbata? Neuróbata?".

Será que o tipo de tradutor não dependeria, em certa medida, do tipo de leitor que lê em tradução?

Classificações são perigosas e, diria, na maior parte das vezes, artificiais; contudo, me arrisco a classificar, num primeiro momento, os leitores em relação à tradução em quatro tipos: o primeiro é aquele que lê o texto traduzido sem ter consciência que se trata de uma tradução - para esse leitor, o tradutor é inexiste; o segundo tipo é aquele que sabe que está lendo uma tradução e não se importa, não se indaga - o tradutor e o autor, para ele, são uma mesma pessoa; já o terceiro tipo é aquele que não lê textos traduzidos, ficando obviamente restrito às culturas dos falantes de sua língua-mãe - para esse leitor, o tradutor não precisava existir; por fim, o último tipo, e é sobre esse que me interessa falar, é aquele que lê textos traduzidos, mas desconfia deles. Para esse leitor, a figura do tradutor está sempre em cena e se assemelharia a dois personagens do curta The Art of Mirrors (A Arte dos Espelhos), de 1973, do cineasta britânico Derek Jarman.

No filme de Jarman, que dura seis minutos, os personagens, um homem e depois uma mulher, andam de um lado para outro no cenário segurando um espelho, o qual, vez por outra, reflete uma luz que se sobrepõe à cena por trás dela.

Partindo das imagens de A Arte dos Espelhos, poder-se-ia esboçar uma alegoria na qual o espelho seria visto como a tradução, que o tradutor segura firme, enquanto o espectador seria comparado ao fruidor da tradução que mantém com ela uma relação de desconfiança. Esse leitor, por exemplo, diante de uma palavra, uma frase, uma rima ou mesmo da métrica de um verso, interromperia a leitura, como se uma luz refletida no espelho atingisse sua retina. Ele se indagaria, então, se era exatamente assim que estava escrito no texto de partida. Nesse instante, o leitor não veria mais o texto de partida; a luz o cegaria por instantes e perturbaria a fruição de sua leitura.

Vejamos um exemplo extremo, na tradução de poesia: se, por questões de ritmo, o tradutor substituir uma palavra por outra, tal escolha poderá dar início a uma série de questionamentos por parte do leitor, no caso de edição bilíngue. Por outro lado, contudo, se o tradutor mantiver a palavra do texto de partida, mas adaptar o ritmo e a métrica do poema, a mesma luz refletida no espelho irá certamente incidir sobre os olhos do leitor da tradução, cegando-o ou não.

O tradutor tem consciência de que carrega esse espelho que reflete luz, mas esse é o seu papel, do qual não pode se furtar, caso queira estar em cena. Aliás, é nesse raio de luz, diria, que se encontra o tradutor. Enquanto "coautor" do texto, ele reflete as suas escolhas e imprime a sua assinatura.

Mas o leitor desconfiado, a que me refiro aqui especialmente, se por um lado está de olho no tradutor, por outro lado parece não querer ver rastos do responsável pela tradução no texto, não quer ouvir a voz do tradutor, como se isso, aliás, fosse possível. O tradutor, como um personagem do filme de Jarman, se por um lado direciona o facho de luz para o leitor, por outro lado ele também está sob um facho de luz. Mas como lidar com esse paradoxo?

*PROFESSORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO DA FEDERAL DE SANTA CATARINA

Estadão
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