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Sem vida digital, imagens de artistas podem desbotar

Para o pesquisador Marcelo Fróes, cabe ao bom herdeiro organizar a obra, administrá-la e ser generoso

3 nov 2019 - 07h34
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Um jovem de 17 anos, classe média, estudante de um colégio particular de São Paulo, olha para uma foto de Chico Buarque e pergunta ao amigo: esse não é o carinha do meme?

Quando Chico Buarque se torna mais conhecido por um meme retroalimentado nas redes sociais do que por seus 55 anos de carreira, algo está em curto no circuito de transmissão natural da cultura de um povo.

O garoto e Chico Buarque não estão só. À parte de uma geração que entra na idade adulta, imagens de artistas tidos como fundamentais por seus pais já começam a aparecer desbotadas.

A memória de um artista na era digital não depende mais apenas de sua relevância histórica para seguir presente, atualizada, relevante e influenciadora. Cada vez mais, a renovação de um público ouvinte depende das operações de manutenção de seus legados realizadas pelos herdeiros. E aqui está o gargalo da história: os herdeiros.

João Gilberto, por todas as páginas que escreveu desde 1959, quando criou a bossa nova, tem vida longa, mas seria eterna? Nenhum produto que traga seu nome será lançado legalmente nos próximos muitos anos, nem mesmo álbuns gravados ao vivo que nunca vieram à tona. Muitos deles seguem escondidos nos arquivos de terceiros que temem a reação de seus representantes, irmãos rompidos entre acusações e processos judiciais. O perigo da ganância pode ser hoje impensável, mas não deixa de ser plausível: torná-lo, em 2059, o carinha do meme.

Em outras palavras, quem não souber administrar a vida digital de seu representado, além de entender a importância arqueológica ao passado e ao futuro de filmes, biografias, documentários, séries de TV, musicais, camisetas, vinis, canetas e bonés, estará trabalhando duro para sua extinção.

Carmelo Maia, filho de Tim Maia, fez acordo recente com as plataformas digitais para incluir nesses ambientes os discos da fase Racional, considerados dos melhores. "Duas coisas jamais andarão separadas: o formato da mídia e a forma da distribuição. É quase um casamento", diz. "Foi preciso se adequar ou, mais, se reinventar."

A Legião Urbana é um caso que inspira atenção. O herdeiro de Renato Russo, Giuliano Manfredini, segue rompido com os músicos Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que integraram a Legião desde o início, e o lançamento ou relançamento de obras da banda fica interrompido. "Tenho um songbook da banda pronto há 10 anos e tentei relançar o álbum 2 nos 20 anos do disco, em que tocamos Juízo Final, de Nelson Cavaquinho, mas não conseguimos. Eu perco a vontade. Espero não nos tornarmos os caras do meme", diz Dado. Giuliano não respondeu às mensagens da reportagem.

Para o pesquisador Marcelo Fróes, cabe ao bom herdeiro organizar a obra, administrá-la e ser generoso. "Tom Jobim é um cara que deveria ter lançamentos todos os anos. É um dos maiores." Nelson Motta fala também de Jobim, mas como exemplo de gerência. "A família administra bem o patrimônio, cobra 10 mil dólares para uso de um trecho de Águas de Março ou Garota de Ipanema em documentário. Tem o instituto, o teatro, as músicas sendo gravadas, tem toda a obra digitalizada… Não vejo o que mais poderiam fazer."

Estadão
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