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Para salvar o som de um Stradivarius, uma cidade inteira tem de manter silêncio

Cremona é sede das oficinas dos maiores luthiers do mundo, que nos séculos 17 e 18 produziu os melhores violinos e violoncelos já concebidos

20 jan 2019 - 17h17
(atualizado às 17h20)
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CREMONA, Itália - Florencia Rastelli estava mortificada. Como barista experiente, ela jamais derrubou uma xícara de café. Mas recentemente, quando limpava o balcão no café onde trabalha, o Chiave de Bacco, ela bateu num copo e ele se espatifou no chão.

Os clientes fizeram silêncio, petrificados, ela lembra. Como se pensassem "de todos os dias, este foi o único". E "até um policial apareceu e pediu para eu não fazer barulho. Fiquei muito envergonhada", disse ela.

Os moradores de Carmona hoje estão inusitadamente sensíveis aos ruídos. A polícia fechou as ruas do centro da cidade normalmente agitado e o tráfego foi desviado. Em uma recente coletiva de imprensa o prefeito da cidade, Gianluca Galimberti, implorou aos cidadãos para evitarem quaisquer sons repentinos e desnecessários.

Cremona é sede das oficinas dos maiores luthiers do mundo, incluindo Antonio Stradivari, que nos séculos 17 e 18 produziu os melhores violinos e violoncelos já concebidos no mundo. A cidade está apoiando um ambicioso projeto que visa registrar digitalmente os sons dos instrumentos Stradivarius para a posteridade, e também de instrumentos confeccionados por Amati e Guarnieri del Gesù, dois outros famosos luthiers de Cremona. E isso significa manter silêncio.

Um violino, uma viola ou um violoncelo Stradivarius, representam o pináculo da engenharia de som e ninguém consegue repetir suas tonalidades únicas.

Fausto Cacciatori, curador do Museo del Violino, de Cremona, devotado a instrumentos musicais, que participa do projeto, disse que cada Stradivarius tem "sua própria personalidade". Mas seus sons distintivos "inevitavelmente mudarão" e podem até ser perdidos dentro de algumas décadas, disse ele.

"Isto faz parte do seu ciclo de vida. Nós os preservamos e restauramos, mas depois de atingirem uma determinada idade eles ficam muito frágeis para serem tocados e 'adormecem'", por assim dizer.

Assim, para as futuras gerações não perderem a oportunidade de ouvir esses instrumentos, três engenheiros de som estão produzindo o Stradivarius Sound Babk", um banco de dados que armazenarão todas as tonalidades possíveis de quatro instrumentos selecionados da coleção do Museo del Violino.

Segundo um dos engenheiros, Mattia Bersani, os sons no banco de dados poderão ser manipulados com software para produção de novas gravações quando o som dos instrumentos originais degradar. Os músicos do futuro poderão "gravar uma sonata com um instrumento que não estará mais funcionando", afirmou.

"Isto permitirá aos meus netos ouvirem o som de um Stradivarius. Estamos imortalizando o melhor instrumento jamais fabricado no mundo".

Durante o mês de janeiro, quatro músicos tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo executarão centenas de escalas e arpejos, usando diferentes técnicas, com seus arcos, ou dedilhando as cordas. Trinta e dois microfones ultrassensíveis instalados no auditório do museu captarão os sons.

"Será um desafio físico e mental para eles", disse Thomas Koritke, engenheiro de som de Hamburgo, que lidera o projeto. "Eles terão de tocar centenas de milhares de notas e transições individuais durante oito horas por dia, seis dias na semana, por mais de um mês".

A organização do projeto também levou um longo tempo, acrescentou Koritke. "Foram necessários alguns anos para convencer o museu a nos deixar usar os instrumentos que datam de 500 anos". Depois foi necessário encontrar músicos de altíssima competência que conhecessem os instrumentos do avesso, disse ele. E a acústica do auditório também precisou ser estudada.

Em 2017, os engenheiros acharam que o projeto estava finalmente pronto para ser colocado em prática. Mas a checagem do som revelou uma falha importante.

"As ruas em torno do auditório são de paralelepípedo, um pesadelo", disse Tedeschi. O som do motor de um carro, ou uma mulher caminhando com sapatos de salto alto produziam vibrações que chegavam ao subterrâneo e reverberavam nos microfones, tornando a gravação imprestável. Ou nós fechávamos a área inteira ou o projeto seria todo enterrado", disse ele.

Felizmente para os engenheiros, o prefeito de Cremona é também presidente da Fundação Stradivarius, proprietária do Museo del Violino. Ele permitiu que as ruas em torno do museu fossem fechadas durante cinco semanas e apelou às pessoas da cidade para não fazerem barulho.

"Somos a única cidade no mundo que preserva os instrumentos e suas vozes", disse Galimberti. "Este é um projeto extraordinário que olha para o futuro, e estou certo que as pessoas de Cremona compreenderão que o fechamento da área era inevitável".

Em sete de janeiro a polícia isolou as ruas. A ventilação e os elevadores do auditório foram desligados. Todas as lâmpadas da sala de concerto foram retiradas para eliminar um zumbido fraco.

Na parte superior no museu, Cacciatori colocou luvas de veludo e tirou uma viola Stradivarius de 1615 da vitrina. Ele inspecionou o instrumento e depois um segurança o escoltou, com o instrumento, dois andares abaixo até o auditório.

O curador entregou o Stradivarius a Wim Janssen, violista holandês, que então se dirigiu para o centro do palco. Ele se sentou numa cadeira no palco meio escuro sob um plêiade de microfones. Os três engenheiros deixaram a sala e assumiram seus lugares no estúdio à prova de som embaixo do salão repleto de microfones, com telas de computador, servidores e cabos.

Janssen usava um fone de ouvido pelo qual recebia as instruções de Koritke.

"Comece", sussurrou Koritke.

O violista tocou uma escala em Dó maior enquanto a equipe de gravação observava os gráficos nas telas respondendo ao som do instrumento. Tedeschi sorria de satisfação.

Então algo aconteceu, e eles gelaram. "Pare um momento", disse Koritke, e o músico voltou à posição inicial. Os engenheiros retornaram à gravação.

Koritke ouviu, em alto e bom som, qual era o problema: "Quem derrubou um copo no chão?".

Tradução de Terezinha Martino

Estadão
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