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Elis Regina aparece atemporal em especial da TV Cultura

No dia em que faria 75 anos, nesta terça (17), a cantora será tema de programas especiais com a participação de seus filhos João Marcello, Maria Rita e Pedro Mariano

17 mar 2020 - 07h11
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Elis Regina parece estar aqui, vivinha, a dois passos de quem a ouve. "As coisas estão tão esquisitas hoje em dia. A gente anda ressabiado de dizer que gosta das pessoas. Então, a gente inventa coisas, entende? A gente inventa que é tímido e que não encontra jeito de dizer... A gente inventa que está ocupado e que um dia vai ter tempo de sentar e conversar. Aí, de repente, você se toca que não tem mais nada para ser feito. É tarde paca."

É assim que começa o especial Elis 75 - Transversal do Tempo, que a TV Cultura exibe nesta terça (17), às 22h45, dia em que a cantora faria 75 anos. São depoimentos de seus três filhos, Maria Rita, Pedro Mariano e João Marcello Bôscoli, entremeados a imagens de momentos raros como os captados durante a turnê Falso Brilhante, entre 1975 e 1977, no Teatro Bandeirantes, de São Paulo, e em entrevistas como a cedida ao programa Ensaio, da própria TV Cultura, conduzido por Fernando Faro em 1973. Na sequência, às 23h45, a emissora mostra a íntegra da entrevista de Elis ao programa Jogo da Verdade, a última que ela concedeu meses antes de morrer, em 1982. Antes dos dois, às 20h45, o programa Metrópolis também faz uma matéria especial para lembrar da data.

Elis 75 pode parecer fora de timing por chegar em dias distópicos, com uma pandemia ameaçando as certezas do mundo e obrigando pessoas a mudar códigos de relacionamentos afetivos. Mas não. Isso tudo o que se vive hoje, em um País rachado pelo ódio, parece ter sido sentido de forma antecipada por Elis. Quando ela chora cantando Casa no Campo em uma rara gravação para um programa de rádio que aparece no especial, Elis chora pelo mundo, pela necessidade de isolamento que a agressão provoca e a faz querer "uma casa no campo / onde eu possa ficar no tamanho da paz / e tenha somente a certeza / dos limites do corpo e nada mais." Trinta e oito anos depois de sua morte, a canção que só era bela se torna urgente.

Elis fala de sua infância em Porto Alegre, de como chegou ao mundo e de como ganhou o nome Elis Regina, e este talvez seja o único momento biograficamente seu. No mais, sua fala soa universal. Maria Rita fala sobre algo em um momento impossível de não soar como a própria Elis soaria hoje, agoniada com a virada do tempo, aquela fenda aberta em algum lugar entre 1998 e 2002 que mudou toda a relação das pessoas com a forma de se ouvir e consumir música. Maria Rita fala com um pesar sobre algo que parece deixá-la realmente perdida: "Eu estou com uma dificuldade muito grande em me adaptar a esse novo tempo onde tudo é pulverizado e descartável, e você lança um disco com 10, 11, 12 músicas e não sabemos em quem nem como isso vai chegar, se isso vai ser consumido, de que forma." A edição esperta faz um corte rápido e coloca Elis, no outro lado da história, com a mesma angústia vivida pelo motivo contrário. "A campanha de massificação é tamanha que, de repente, você está gostando de coisas que normalmente você não gostaria", diz para o entrevistadores Zuza Homem de Mello e Mauricio Kubrusly, no Vox Populi. Se Maria Rita e muitos artistas sofrem por se sentirem um grão na pulverização sem foco de 2020, Elis sofria pela concentração de poucos artistas na linha dos mais executados pelas rádios de 1980.

As muitas imagens aproveitadas do Ensaio de 1973, apresentado por Fernando Faro, um dos muitos homens que se apaixonaram pela cantora, são para se degustar ciente de que aquilo foi um momento histórico. Canções como Vou Deitar e Rolar, Ladeira da Preguiça, Aviso aos Navegantes ou Eu Preciso Aprender a Ser Só são feitas com uma Elis absurdamente inspirada e rodeada pelos principais músicos que estiveram a seu lado. Uma versão curiosamente mais enxuta, sem guitarrista. Ela tem o marido Cesar Camargo Mariano ao piano, o baixista Luisão e o baterista Paulo Braga fazendo tudo ter a liberdade do samba jazz que ela ouviu muito em 1964, no Beco das Garrafas.

Um dos momentos mais emocionantes do Vox Populi é o que mostra um morador da Brasilândia, na periferia norte de São Paulo, fazendo uma pergunta. Ele não entende que o programa está sendo gravado, pensa estar falando com Elis. "Ela está me ouvindo?", pergunta ao repórter. E quando sente que pode falar, diz: "Alô, Elis? Tá me ouvindo? Por que você não vem aqui na Brasilândia fazer um show, hein? Aqui no ginásio mesmo, aqui pertinho. Tá escutando a resposta, tá? O que foi que ela respondeu?" Quando corta para Elis no estúdio, ela está chorando e rindo ao mesmo tempo com o amor de um homem simples. "Vou sim, moço, juro por Deus que eu vou."

Elis morreu sem cumprir a promessa. Ela até havia tentado sair pelo subúrbio do País ao projetar a ideia de Falso Brilhante, imaginando que iria encená-lo em um circo itinerante. Mesmo quando já a haviam colocado como uma das maiores vozes, Elis queria chegar a mais gente do que chegou, tocar nas rádios populares e ser abraçada pelo povo das periferias. Saída dos conjuntos operários da Vila do IAPI, sua voz transpassava classes sociais e o próprio tempo por ter o coração como única matriz.

Estadão
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