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Como George Orwell fundiu ficção e realidade na literatura e no jornalismo

Barreira entre real e imaginário é porosa na obra do escritor inglês que investigou como ninguém a noção de 'verdade'

11 jul 2020 - 05h12
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Na verdade, o escritor inglês George Orwell não nasceu na Inglaterra e não se chamava George Orwell. Nascido em Motihari, na Índia britânica, Eric Arthur Blair (1903-1950) foi para a Inglaterra com um ano de idade. Apesar de se esconder sob um pseudônimo, sua obra literária, tanto ficcional quanto jornalística, é incontornável para se compreender a noção de "verdade".

Orwell viveu como um verdadeiro cidadão do mundo: foi policial em Mianmar (antiga Birmânia), combateu o regime de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola e cobriu o duro cotidiano dos indigentes como repórter. Dessas vivências, tirou inspiração para seus romances de cunho altamente político, como Dias na Birmânia, 1984 e A Revolução dos Bichos, que gravaram no imaginário coletivo a ideia de que a verdade torna-se mutável sob a ubiquidade do autoritarismo.

Por exemplo, o Ministério da Verdade do distópico 1984, que altera fatos históricos para beneficiar o governo do Grande Irmão, tem relação com o período em que sua mulher, Eileen O'Shaughnessy, trabalhou para o departamento de censura do regime britânico na 2ª Guerra.

Se a ficção conta mentiras em busca de uma verdade mais profunda - ou uma verdade inventada, como pontuou Clarice Lispector -, é interessante que a outra metade fundamental da obra de Orwell tenha sido dedicada à reportagem, gênero em que nada cabe para além da verdade.

No final dos anos 1920, ele viveu entre os miseráveis, experiência que quase o levou à morte em um hospital popular, mas lhe rendeu diversos ensaios (Como Morrem os Pobres, O Albergue, etc.) e uma grande reportagem. Na Pior em Paris e Londres antecipou em décadas o experimentalismo formal de Gay Talese, Tom Wolfe e outros expoentes do New Journalism, movimento que uniu o rigor da apuração jornalística a técnicas de narrativa literária - algo que, diga-se de passagem, Euclides da Cunha e João do Rio já faziam no Brasil.

O interesse genuíno de Orwell pela vida dos personagens que ele retratava, sua empatia e agudeza ao narrar as injustiças sociais são traços comuns ao bom repórter e ao bom ficcionista. "Especulou-se muito sobre a proporção entre fato e ficção nos ensaios de Orwell", afirma o crítico literário James Wood. E isso não surpreende.

No ensaio O Enforcamento, Orwell descreve como um condenado caminha em direção ao cadafalso e, "apesar dos homens que o agarravam pelos ombros, desviou-se uma vez ligeiramente para evitar uma poça de água." A partir dessa observação trivial para um escritor menos habilidoso, ele constrói uma meditação sobre a extinção de uma vida saudável. Terá mesmo o condenado evitado sujar os pés antes de morrer? Não importa. Verdadeira, com V maiúsculo, é a reflexão que o texto propõe. A mesma verdade que se lê na ficção de Eric Blair.

SOBRE A VERDADE

Autor: George Orwell

Tradução: Claudio Marcondes

Editora: Companhia das Letras

208 páginas

R$ 29,90

Estadão
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