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Viola Davis e Chadwick Boseman são emocionantes em 'A Voz Suprema do Blues'

É estimulante e profundamente perturbador observar dois atores no ápice do vigor, mas sabendo que esta é a última aparição na tela de Boseman

5 dez 2020 - 10h10
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Em A Voz Suprema do Blues, Viola Davis ocupa a tela com a imponência imperiosa e implacável de um grande pugilista, que, em muitos sentidos, o seu personagem foi obrigado a se tornar.

Com os dentes encapados de maneira extravagante, as faces cobertas de abundante rouge e os olhos contornados por sombra semelhante a uma ferida, a Ma Rainey de Viola é uma figura aterrorizante, paralisante, dominadora, inconstante e profundamente magoada. Na impressionante adaptação de George C. Wolfe da peça de August Wilson, ela exerce uma força de atração centrífuga primal em uma produção que obedece aos limites do cenário reduzido de Wilson - a história se desenrola em um estúdio de gravação de Chicago no decorrer de um único dia - mas jamais parece apertada ou limitada.

A Voz Suprema do Blues poderia evidentemente dramatizar a gravação do sucesso da cantora na vida real, de 1927. Mas a prodigiosa torrente de palavras - as histórias intermináveis, os solilóquios e súplicas aos céus - cantam com a mesma musicalidade dos blues autênticos que pontuam o diálogo.

Quase sempre, essas falas impetuosas são pronunciadas por Levee, o trompista de Chadwick Boseman em uma interpretação indubitavelmente tão virtuosista quanto à de Viola. Como o desafiante peso galo do título de Ma Rainey, o Levee de Boseman é um sujeito observador, impaciente e rápido. Se ela encontra o seu poder na ausência de pressa, Levee exibe o seu na velocidade e no impulso. Ele foi descoberto no circuito de músicos do Sul e chega ao estrelato no Norte (trajetória eficientemente mostrada em uma montagem do início). Ma Rainey desconfia com razão dos produtores brancos ansiosos por explorar o talento e o apelo popular da cantora; Levee, por sua vez, está convencido de que pode entrar no jogo deles e ganhar de dentro mesmo.

Debates semelhantes - acomodação x revolução, assimilação x integridade cultural, roubo x homenagem - perpassam A Voz Suprema do Blues como o 'ostinato' de uma linha de contrabaixo que vai deslizando suavemente. Quando Levee e seus colegas músicos se reúnem no estúdio - o resto do bando é interpretado por Glynn Turman, Colman Domingo e Michael Potts - a questão dramática mais premente é quando Ma aparecerá ou se aparecerá. Enquanto o produtor branco (Jeremy Shamos) fica cada vez mais agitado, os homens conversam, procuram a afinação e gracejam entre si, com abandono irreverente.

Os sapatos novos de Levee inspiram Slow Drag (Potts) a criticar a realização juvenil dos prazeres momentâneos quando a sua energia deveria se concentrar na criação de um futuro sólido para a próxima geração. Levee, língua afiada e repleto de ambições, não liga para isso. A sua impetuosidade o aprisionará de muitas maneiras até o dia acabar.

Quando Ma Rainey finalmente aparece - envolvida em veludo e casaco de pele, seu amplo décolleté banhado por uma brilhante transpiração - segue-se o conflito, desta vez sério, que aos poucos se torna mais psicológico. Ela não gosta de Levee - não só por causa da sua constante arrogância, mas porque ele está de olho na jovem namorada deferente de Ma, Dussie Mae (Taylor Paige). As tensões crescem ainda mais quando Ma insiste que seu sobrinho Sylvester (Dusan Brown) faça a introdução falada da canção, apesar da gagueira.

Este trechinho repetido, escrito por Wilson como "alívio cômico" em 1982, não envelheceu particularmente bem. Mas a energia crepitante e a raiva subterrânea mantêm A Voz Suprema do Blues em efervescência e não perderam nada de sua força. Wolfe optou por uma produção simples, embora com valores visuais ricos e atraentes, e costumes lindos, permitindo que as atuações exerçam uma força hipnotizante. E em nenhum outro momento o magnetismo é mais palpável do que quando Davis e Boseman se defrontam, duas energias repelindo-se reciprocamente em um momento, e fundindo-se no outro.

É estimulante e profundamente perturbador observar dois atores no ápice do vigor, mas sabendo que esta é a última aparição na tela de Boseman, que morreu em agosto. O ator se tornou mais conhecido no papel do super-herói em Pantera Negra, mas a facilidade com que ele incorpora Levee lembra os espectadores da profundidade dos seus talentos ainda tão pouco explorados. (O seu discurso mais impressionante, uma irada discussão com Deus, só pode carregar um trágico duplo sentido.) Não há palavras suficientes para descrever a brilhante interpretação de Viola Davis no papel de Ma Rainey. Quanto a Boseman, apenas uma parece suficiente: droga, droga, droga!

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Estadão
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