PUBLICIDADE

Retrospectiva 2018 Cinema: Streaming ganha espaço no reino das telas grandes

Produção Roma vai parar no Oscar e coloca lenha na fogueira entre ecléticos das várias telas e os fundamentalistas da tela grande

31 dez 2018 - 06h11
Compartilhar
Exibir comentários

Num ano em que o Fla-Flu entre streaming x salas de cinema chegou à tensão máxima, a Netflix parece ter dado um xeque-mate na questão. Ou, pelo menos, fez uma jogada de mestre ao levar sua produção mais ambiciosa - Roma, do mexicano Alfonso Cuarón - ao Festival de Veneza, driblando Cannes, que não aceita filmes produzidos e lançados nessas condições. Roma faturou o Leão de Ouro, um dos prêmios mais importantes do cinema internacional, foi lançado com espalhafato no mundo todo e transformou-se no favorito para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Tem tudo para se consagrar. E botar mais lenha na fogueira da discussão entre os ecléticos das várias telas e os fundamentalistas da tela grande.

Independentemente da polêmica, Roma é mesmo um dos melhores lançamentos do ano. Busca nas memórias de infância do diretor, passada no bairro da Cidade do México que dá título ao filme, material para reflexão sobre as desigualdades sociais em seu país. Esculpido em luz e sombra, num preto e branco chapado, Roma nunca é didático. Prefere a linguagem poética e alusiva para falar da (problemática) convivência entre patrões e empregadas domésticas, discorrer sobre o afeto familiar, e a predominância do universo feminino, mesmo em sociedades machistas. O filme não deixa de lado a emoção e tampouco abdica da lucidez, conciliando esses dois extremos problemáticos da realização cinematográfica. É show.

O ano teve também vários outros lançamentos de alto nível. No ponto mais alto do pódio, colocaria Visages, Villages, de Agnès Varda, uma veterana que se reinventa a cada nova obra cinematográfica. Nesta, em companhia do fotógrafo JR (que co-assina o filme) ela revisita a França do interior, das pequenas cidades, fala com as pessoas comuns e, através de fotografias em tamanho gigantes, depois instaladas em pontos estratégicos, produz um tipo invulgar e amoroso de intervenção urbana e humana.

Também da França veio o comovente e cheio de energia 120 Batimentos por Minuto, de Robin Campillo, sobre o ativismo em torno do direito ao tratamento da Aids. O russo Sem Amor, de Andrey Zvyagintsev, mergulha fundo na sociedade egoísta e competitiva surgida no pós-comunismo, através da história de um casal que se desfaz e de um filho que desaparece.

O coreano Em Chamas, de Lee-Chang Dong, merece destaque especial tanto pela beleza de suas imagens, como pelo surpreendente da trama. Baseando-se num conto de Haruki Murakami, discute a literatura e a sexualidade através de um invulgar triângulo amoroso. O desfecho é um soco poético no plexo do espectador, com valor de epifania.

Entre os estrangeiros, há que se destacar a boa presença das produções latino-americanas no circuito, algo que não é lá muito usual. A começar pelo surpreendente Museu, do mexicano Alonzo Ruizpalacios que, através da história de um furto de peças raras no Museu de Arqueologia da Cidade do México, faz um radical raio-X da sociedade mexicana. Com Roma e Museu, o México emplaca dois dos melhores filmes do ano. Não é pouco.

Mas há mais em termos de cinema latino. Não se pode esquecer de Zama, da argentina Lucrécia Martel, uma prospecção imagética dos tempos coloniais. E da grande surpresa do ano, o paraguaio As Herdeiras, de Marcelo Martinessi, filme pequeno e delicado sobre questões de gênero, que espantou, sobretudo, aqueles que costumam subestimar o país vizinho. Talvez o mais emocionante dos latinos seja Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, sobre o martírio de presos políticos durante a ditadura uruguaia. Um deles, que sobrevive em condições inumanas, seria o futuro presidente do Uruguai, Pepe Mujica.

Os destaques do cinema brasileiro também chegaram em bom número. A começar por este extraordinário Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans, uma imersão em primeira pessoa no universo do trabalhador brasileiro em regime precário, aquele que exerce um sem-número de ofícios e ganha da mão para a boca na sobrevivência cotidiana.

Na chave mais íntima, mas também sobre o áspero mundo do trabalho, não se pode esquecer de Pela Janela, de Caroline Leone. Magali Biff é extraordinária ao interpretar uma operária especializada que é demitida, perde o rumo na vida e tenta reencontrar seu eixo numa viagem em companhia do irmão.

Benzinho, de Gustavo Pizzi, é um dos filmes mais encantadores do ano. História de uma família em aparência caótica porém unida por um afeto real. Karina Telles dá show como a mãe que precisa administrar a ida do filho adolescente para um país estrangeiro.

As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, e O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida, mostram como a nova geração brasileira consegue se apropriar do cinema de gênero de maneira original e com olhar atento às contradições sociais.

Dois filmes de veteranos também merecem menção. Ruy Guerra, um dos maiores nomes do Cinema Novo, reinventou com profunda originalidade o romance Quase Memória, de Carlos Heitor Cony. Helena Ignez, musa do Cinema Novo e do Cinema Marginal, afirma-se como diretora com A Moça do Calendário, por certo o filme mais libertário do ano. São dois jovens.

O cinema documental brasileiro mostrou dezenas de lançamentos e se torna a cada ano mais consistente. Entre tantos filmes bons, o destaque simbólico fica para O Processo, de Maria Augusta Ramos, sobre o kafkiano impeachment de Dilma Rousseff. Ao refazer as etapas de uma condenação de cartas marcadas, a diretora mostra como o realismo fantástico só poderia ter nascido mesmo no coração da América Latina, com seus caudilhos, golpes, "pronunciamentos", viradas de mesa e outros expedientes políticos nada democráticos.

Tendo alcançado bom patamar de realização, o cinema brasileiro tem lutado para encontrar seu público. O desafio, nos anos seguintes, será outro: simplesmente sobreviver.

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Publicidade