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Presidente da Acerp: 'Foi uma brutalidade eles virem para a Cinemateca com a Polícia Federal'

Francisco Câmpera comanda a Associação Roquette Pinto, que fazia a gestão da Cinemateca Brasileira, desde o início de 2019; diretor afirma que buscou o tempo todo uma solução pacífica

7 ago 2020 - 16h50
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A Cinemateca Brasileira está agora no comando do governo federal, pelo menos por um tempo. Um representante da Secretaria Especial de Cultura esteve presente na manhã desta sexta-feira, 7, na instituição, em São Paulo, em um ato simbólico de transferência de responsabilidades, e prometeu que o Ministério do Turismo publicará nos próximos dias um chamamento para um novo contrato de gestão.

Desde 2018, a Cinemateca Brasileira era gerida pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. A Acerp tinha um contrato assinado com o Ministério da Educação, numa parceria com a TV Escola, válido até o fim de 2019 e não renovado. O contrato de gestão da Cinemateca, assinado até 2021, estava incluído em um anexo a esse outro documento.

Desde o início do ano, a instituição de preservação e difusão do audiovisual brasileiro — importante não apenas para o cinema, mas para a memória nacional como um todo — se encontrava em um limbo jurídico, pois o governo federal não buscou publicar um novo edital para gerenciamento da Cinemateca, e tampouco reconheceu o contrato e repassou os recursos previstos para a Acerp. "A Cinemateca só está viva até hoje porque gastamos cerca de R$ 14 milhões", defende o presidente da Acerp, Francisco Câmpera, em entrevista exclusiva ao Estadão.

"Em 2019, recebemos no último dia do ano R$ 7,2 milhões, sendo que o custo é de cerca de R$ 1,2 milhão mensais. Este ano não recebemos nenhum centavo. Para se ter uma comparação, o MIS de São Paulo, que representa cerca de 20% da Cinemateca, recebe o dobro de recursos. Nós fizemos a nossa parte defendendo este patrimônio precioso e inestimável da sociedade brasileira", afirma Câmpera.

Em um documento enviado à Justiça, no âmbito da ação civil pública que o Ministério Público Federal moveu contra a União sobre o assunto, a Advocacia Geral da União se defende afirmando que a Acerp também é responsável pelo desacerto, uma vez que sabia que o contrato principal, assinado com o Ministério da Educação, venceria em 2019.

Sobre essas questões e problemas, Câmpera respondeu a perguntas da reportagem por email. Abaixo alguns trechos editados da conversa.

Nesse exato momento, a Cinemateca Brasileira corre algum risco agudo em questão de segurança?

Francisco Câmpera: O risco diminuiu consideravelmente depois dos nossos esforços em salvar e modernizar a Cinemateca, porque assim que assumi a Roquette Pinto, no início de 2019, demos início às obras necessárias contra incêndio. A Cinemateca não tinha nem alvará, sendo que o último incêndio aconteceu em 2016, lembrando que boa parte do arquivo está sujeito à autocombustão. Uma irresponsabilidade imensa da Secretaria Especial de Cultura, que neste tempo todo não tomou nenhuma providência nem assumiu os custos. Para evitar mais uma tragédia, a Roquette Pinto tirou dinheiro do próprio caixa, iniciou um processo de regularização e de modernização dos equipamentos de combate e prevenção a incêndios e agora temos equipamentos disponíveis. Aliás, a Cinemateca só está viva até hoje porque gastamos cerca de R$ 14 milhões. Em 2019, recebemos no último dia do ano R$ 7,2 milhões, sendo que o custo é de cerca de R$ 1,2 milhão mensais. Este ano não recebemos nenhum centavo. Para se ter uma comparação, o MIS de São Paulo, que representa cerca de 20% da Cinemateca, recebe o dobro de recursos. Nós fizemos a nossa parte defendendo este patrimônio precioso e inestimável da sociedade brasileira. Nós já perdemos o Museu Nacional, não podíamos correr o risco de mais uma tragédia. Hoje a Cinemateca encontra-se muito mais preparada e protegida contra essas tragédias, graças aos investimentos significativos que realizamos exclusivamente com recursos próprios. Nós demos uma grande contribuição, não permitindo o fechamento da Cinemateca, inclusive assumindo o pagamento de salários dos funcionários, o pagamento de contas atrasadas e a realização de investimentos em novos equipamentos, sem receber nada em troca.

Como você recebeu a decisão judicial da segunda-feira, 3? Qual o posicionamento da Acerp sobre ela? (Leia aqui.)

Este processo foi movido pelo Ministério Público Federal contra a União. O procurador defendeu uma liminar para nos manter à frente da gestão até que se faça uma transição segura e profissional, mas não foi aceita pela Justiça Federal, que encaminhou a matéria para a conciliação no MPF. Se não houver acordo, o MPF poderá prosseguir com a ação cívil pública, que poderá até mesmo implicar na improbidade administrativa por parte dos agentes públicos responsáveis por essa omissão. O próprio MPF aponta nessa ação como o principal responsável o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, que foi alertado por dois ministérios, Economia e Cidadania, que ele deveria manter o contrato de supervisão por pelo menos mais seis meses para garantir uma transição segura e profissional. Ele rompeu o contrato da TV Escola a apenas 13 dias do final, sem nenhum aviso prévio, ou manifestação a respeito. Apesar do contrato com a Cultura ser separado, com validade até 2021, ganho por meio de licitação pública, o MEC tinha um papel de supervisor do contrato.

A ação pelo menos vai nos dar condições de cobrar os atrasados judicialmente, porque o Ministério do Turismo, infelizmente, ainda se recusa a pagar o que nos deve. A liminar não retirou o direito da Roquette Pinto de receber os valores gastos em 2019 e 2020 e, havendo boa-fé da União, até mesmo para evitar a caracterização de enriquecimento ilícito dos agentes públicos, confiamos que haverá o ressarcimento legal.

O processo também nos deu a oportunidade defender publicamente perante à sociedade e ao MPF o cumprimento do Termo de Doação da Cinemateca ao Governo Federal, que garante a permanência em São Paulo, e autonomia financeira, técnica e administrativa. Ou seja, a gestão da Cinemateca não pode ser estatal.

Apesar do pedido do secretário Mario Frias, para obter a posse, não houve até agora um processo legal (administrativo) para romper o contrato de fato, que obriga aviso prévio de seis meses de antecedência. Recebemos apenas um ofício nos comunicando. Vamos acatar este pedido porque cumprimos a nossa missão de manter a Cinemateca viva. Estamos com a consciência tranquila.

Desde o início de 2019, sete nomes passaram pela titularidade da Secretaria Especial de Cultura. Como tem sido o diálogo com a Secretaria e com o Ministério do Turismo nesse período, especialmente em 2020?

Pois é, não tinha como dar certo, a secretaria ficou à deriva com este entra e sai o tempo todo! Sete secretários de Cultura e mais uns sete secretários de Audiovisual, ao qual a Cinemateca está submetida, contando com os interinos. Além disso, a Cultura deixou de ser ministério e ficou meses para mudar do Ministério da Cidadania para o Turismo. Ainda houve uma disputa entre outros ministérios para ficar com a Secretaria. Além do mais, a Regina Duarte levou uns dois meses para assumir e cerca de um mês para sair de fato. Então o nosso trabalho sempre foi um eterno recomeço.

O contrato de gestão da Cinemateca era vinculado a um contrato da Acerp com o Ministério da Educação, que não foi renovado em 2019. Mas o contrato de gestão da Acerp era vinculado até 2021, embora o governo federal não o reconheça. A Acerp vai entrar na Justiça para reivindicar a validade do contrato?

Estamos tentando chegar num acordo com o ministério, não queremos conflito, buscamos sempre uma solução pacífica. Não estamos lutando para nos manter na gestão, mas para salvar a Cinemateca. É público e notório que ela está em pé até hoje por nossa causa. O ministério do Turismo só se movimentou depois de ser citado pelo MPF e depois que foi comunicado que vereadores e a Prefeitura de SP, que é a dona do terreno da Cinemateca, resolveram ajudar, inclusive com recursos financeiros. Aí em poucos dias as autoridades criaram uma falsa narrativa que estava tentando pagar as contas. Nós trabalhamos com fatos, não narrativas. Temos orgulho de ter salvado a Cinemateca, que é de conhecimento da sociedade, vereadores, Prefeitura e entidades do setor cultural. Um importante assessor do (presidente Jair) Bolsonaro, acompanhou todo o processo de perto e sabe da verdade.

Curioso que no processo do MPF a própria Secretaria de Cultura recomenda a gestão da Roquette Pinto e destaca a importância da transição, pois tudo está no nosso nome. Não apresentaram à Roquette Pinto nem à sociedade civil (entidades do setor, Câmara, etc) um plano de trabalho concreto. Agora, eles vão assumir a Cinemateca sem funcionários, sem nada, porque simplesmente não existe um processo administrativo. Foi uma brutalidade eles virem tomar posse com a Polícia Federal. Uma atitude lamentável e desnecessária.

Nós lutamos também para que os termos de doação sejam respeitados, que obriga que a instituição se mantenha em São Paulo, onde está desde a fundação, há quase 80 anos. Espero que o Ministério do Turismo tenha de fato desistido esta ideia absurda de levar a Cinemateca para Brasília. Além do mais, é em SP onde está boa parte do mercado do Audiovisual. A Cinemateca atende este setor que está sofrendo por ela estar fechada, estão parados, deixando de finalizar a produção há meses.

Na peça vinculada ao processo, a AGU diz o seguinte: "A ACERP, ao subscrever o aditivo, aceitando seus termos, tinha plena ciência de que estava modificando um contrato de gestão mais antigo, e com prazo determinado, até 2019. A entidade poderia ter se recusado a esse modelo de contratação, abrindo mão do resultado do chamamento público, ou então demandando em juízo a adjudicação de um contrato autônomo, naturalmente assumindo os riscos da improcedência da ação, diante da alteração superveniente do quadro normativo". Qual a posição da Acerp sobre essa questão?

Se nós não cumpríssemos o contrato, poderíamos responder por prevaricação, sem o desfazimento do contrato com o devido processo administrativo. A Secretaria de Cultura não tomou providências e simplesmente abandonou a Cinemateca, fato! Nós temos compromisso com o País, com a Cultura. Em fevereiro teve uma enchente na segunda unidade, um local inadequado onde descobrimos que o solo é contaminado por um antigo lixão. Avisamos a Secretaria por meio de ofício e fotos, houve até uma visita do então secretário de audiovisual, e nada foi feito. O Mario Frias assumiu há pouco tempo e não tem responsabilidade sobre este passado. Prefiro responder por salvar a Cinemateca, do que por abandono e negligência. De qualquer forma, se não houver acordo na conciliação junto ao MPF, quem vai decidir a questão vai ser a Justiça.

A AGU afirma peremptoriamente que a União já tomou medidas para preservação do acervo, pagamento da conta de luz, etc. Essas medidas, porém, começaram a aparecer apenas nos últimos dias. Por que você acha que houve essa demora, de aproximadamente sete meses?

Veja a contradição. A Prefeitura de SP sem contrato estava tomando providências para assumir os custos, inclusive fornecendo segurança da Guarda Municipal, o que é essencial também para alerta contra incêndio. Já o Ministério do Turismo e a Secretaria se recusam a nos pagar, mesmo tendo contrato conosco e o dinheiro de 2020 já está no orçamento. Não tem sentido! Entendo que eles se sentem inseguros quanto à segurança jurídica, apesar de pareceres favoráveis do próprio governo. Porém, existiam outras opções para resolver. Eles insistem em não pagar principalmente a diferença de 2019. A Justiça, MPF, TCU, e os orgãos de controle vão querer saber o que aconteceu. Nós somos a vítima! Temos auditoria da Price, conselho, comissão de fiscalização... e um giga de documentos que entregamos para o MPF e ao próprio ministério. Tudo é documentado por nós, trabalhamos profissionalmente, tecnicamente. Se houvesse um pouco de bom senso e compromisso com o País e até mesmo destes agentes públicos com o governo, nada disso estaria acontecendo.

A Acerp está disponível para o diálogo com o governo federal no sentido de resolver a situação atual? Como?

Claro, sempre estivemos disponíveis ao diálogo. O ministro do Turismo, Marcelo Henrique Teixeira Dias (Marcelo Álvaro Antonio) e o Secretário Mario Frias estiveram na Cinemateca e a conversa foi ótima e tudo foi acertado. Mas depois nada aconteceu de concreto. Houve apenas uma reunião no Turismo com o secretário-executivo, Daniel Nepomuceno, sem ninguém da Cultura, onde foi apresentada uma proposta completamente diferente do que foi previamente acertada. O Daniel e a equipe dele não estavam na reunião com o ministro e o Frias. Como eu não consegui falar depois com o ministro, até hoje eu não sei se ele tem conhecimento da proposta indecorosa que nos fizeram. Depois recebemos um ofício sem valor jurídico assinado pelo Frias, que tinha acabado de assumir o cargo. Ficou claro que ele não foi bem orientado. Bem, o importante agora é resolver de uma vez, não adianta apontar culpados, contra fatos não há discussão. Só espero que cheguemos num consenso na conciliação para que não acabe numa guerra judicial sem fim que prejudique ainda mais a Cinemateca.

Quais são os próximos passos da Acerp?

Esperar a conciliação do MPF para avaliar melhor os próximos passos. Vamos entregar a posse, mesmo sem receber nenhum tostão nem um muito obrigado, para evitar prolongar a agonia da Cinemateca, dos funcionários e do setor de audiovisual, que não consegue terminar os filmes. Queremos, claro, receber os atrasados, abrir procedimento administrativo para finalizar legalmente o contrato, e garantir o cumprimento dos termos de doação. Somos flexíveis, estamos dispostos a abrir mão de certos direitos, como aviso prévio de seis meses, mas precisamos preservar os funcionários ultra-especializados, alguns com décadas de casa, para o bem da Cinemateca. Leva-se anos para formar certas especialidades. Até agora eles se recusam a pagar os salários atrasados e assumir os funcionários. Difícil entender!

É público e notório o serviço de gestão prestado pela Roquette Pinto em 2019 e 2020, conforme vasta prova documental. Demos nossa contribuição e não permitimos o fechamento da Cinemateca assumindo salários de funcionários e pagamentos de contas diversas, sem receber nada, nada em troca. Nosso objetivo sempre foi de transição pacífica sem politização e visando apenas a gestão profissional. Espero, sinceramente, que agora eles preservem a nossa memória nacional em vídeo, com filmes de mais de um século, com a história particular dos brasileiros, das Forças Armadas, expedições do Marechal Rondon, do cinema desde quando era mudo, o glorioso Canal 100, mais de 30 anos de arquivos da TV Tupi, a primeira emissora do Brasil (1950), cinejornais de JK, Getúlio Vargas, entre tantas outras preciosidades. Pagamos literalmente caro para preservar este patrimônio único, a nossa missão está encerrada.

Estadão
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