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Crítica: 'História de um Casamento' explora enigmas que marcam a passagem do amor ao ódio

Filme de Noah Baumbach flutua entre o drama e a sitcom, trabalhando com alívios cômicos esporádicos, porque os tempos atuais são duros para obras difíceis e o espectador não aguenta tanta tensão seguida

16 dez 2019 - 06h12
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No início de Anna Karenina, Tolstoi escreve que todas as famílias felizes são iguais e cada família infeliz o é à sua própria maneira. Essa, digamos, originalidade da infelicidade é ilustrada pela dupla Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson), protagonistas de História de um Casamento, de Noah Baumbach. Produção da Netflix, lidera as indicações do Globo de Ouro nas categorias melhor filme dramático, Scarlett Johansson e Adam Driver para melhor atriz e ator em filme dramático, Laura Dern para coadjuvante em filme dramático, além de roteiro de cinema e trilha sonora original.

Como tantas histórias infelizes, esta também começa por algo que passa por felicidade. No caso, o casal lendo uma lista de qualidades atribuídas ao parceiro. Como parecem admirar-se mutuamente esse diretor de teatro (Driver) e sua esposa Nicole (Johansson)! No entanto, logo o espectador será forçado a se desfazer de ilusões e encarar o que tem pela frente — um casal em crise. Charlie é novaiorquino até as solas dos sapatos. Nicole tem a família em Los Angeles e resolve mudar-se de volta para lá, levando o filho do casal, o garoto Henry (Azhy Robertson).

O filme é em parte inspirado na experiência do diretor. Noah é filho de pais separados e teve, ele próprio, de enfrentar o fim do seu casamento com Jennifer Jason Leigh, com quem teve um filho. Essa, a faceta pela qual o artista dialoga com sua biografia para criar a obra. A outra, a óbvia referência a um clássico do gênero, Cenas de um Casamento (1974), de Ingmar Bergman, com as escaramuças afetivas entre o casal Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann). Aliás, retomadas com os personagens já na velhice, no espantoso Saraband (2003), obra final de Bergman, que morreria em 2007.

A referência não deve ser motivo para comparações. Bergman habita o rarefeito panteão dos gênios do cinema e avaliar obras por esse metro exigente chega a ser covardia. Além da questão estética, existe a distância cultural entre uma obra gerada no interior de uma sociedade contemporânea do espetáculo, e outra, reflexo da atormentada alma nórdica da qual Bergman era representante.

Desse modo, por complexo que seja (e é), História de um Casamento, flutua entre o drama e a sitcom, trabalhando com alívios cômicos esporádicos, porque os tempos atuais são duros para obras difíceis e o espectador não aguenta tanta tensão seguida. Esta nasce da diferença de personalidade entre os protagonistas. Não por acaso, são provenientes de extremos do país, Nova York de um lado, Los Angeles de outro. Um tipo de rivalidade parecida com a que existia entre a nossa Rio x São Paulo, antes desta passar de moda.

Outra característica bem norte-americana surge com a entrada dos advogados em cena, transformando o que seria uma separação amigável numa batalha campal. Nesse ponto, a figura de destaque é Laura Dern no papel da advogada Nora. Maquiavélica e belicosa, Nora imprime outro tom à separação, tomando para si a causa de Nicole pela guarda do filho do casal. O que obriga Charlie a contra-atacar, levando o litígio a patamares cada vez mais sanguinolentos.

No interior dessa crise, agora aberta, brotam os momentos mais brilhantes tanto de Adam Driver quanto de Scarlett Johansson. Em especial, numa magnífica (e pungente) sequência, em que uma tentativa de acordo desanda e leva os antigos amantes ao mais baixo grau de agressão. A razão cede à paixão e os instintos primitivos entram em cena. Nesse ponto as metáforas bélicas da advogada Nora começam a fazer sentido. Uma separação pode se parecer a uma guerra de extermínio, aquela na qual não se fazem prisioneiros. Quem perde, morre. E não há alívio cômico que dissipe a angústia despertada por essa enigmática passagem do amor ao ódio, como se apenas uma fina película separasse sentimentos antípodas.

Noah Baumbach tem insistido que o filme não é um retrato fiel do seu próprio casamento e separação. De fato, dados biográficos podem servir como pontos de partida para a ficção mas logo esta se livra de seus laços reais, liberta-se e começa a andar por sua conta e risco. Torna-se invenção e pode aspirar à universalidade da experiência humana. No caso, a tragédia existencial que faz com que todos tenham lá suas razões. Sendo estas opostas, como arbitrá-las quando existe um terceiro em causa, isto é, um filho?

Nesse ponto me parece que Baumbach se desprega de casos particulares e lança um olhar à estrutura do seu próprio país. Tocqueville, no século 19 (em A Democracia na América) já havia notado a extraordinária presença dos advogados na vida cotidiana nos Estados Unidos. Para enfrentar a advogada Nora, brilhantemente interpretada por Laura Dern, Charlie contrata um velho profissional humanista (Alan Alda), mas depois se vê obrigado a substituí-lo pelo igualmente sanguinário Jay (Ray Liotta), único capaz de nivelar-se a Nora. A batalha judicial ganha dinâmica própria, arrastando seus personagens e forçando-os a infligir o maior dano possível aos oponentes.

A judicialização dos afetos e do espaço íntimo talvez seja o verdadeiro cerne deste interessante filme. Uma espécie de custosa administração jurídica da infelicidade.

Veja o trailer de História de um Casamento:

Estadão
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