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Clássico do Dia: 'Os Canhões de Navarone' eternizou-se em cartaz nos cinemas brasileiros

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este de J. Lee Thompson que, a par do excepcional sucesso de público, foi referendado pela crítica e ganhou várias indicações para o Oscar

17 set 2020 - 08h10
(atualizado em 29/10/2020 às 11h07)
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Na entrevista que deu à Sight & Sound, Summer 2020, sobre sua incursão pela herança da Guerra do Vietnã na vida norte-americana - na vida dos negros norte-americanos -, Spike Lee conta que, desde o início, sempre pensou na história de Destacamento Blood com um elemento de aventura. Filmes como O Tesouro de Sierra Madre, que lhe forneceu o plot sobre o ouro escondido, mas principalmente os filmes de guerra que ele via, quando garoto, na TV, e que o moldaram. A Ponte do Rio Kwai, Os Canhões de Navarone.

O cinéfilo, principalmente jovem, pode nem conhecer o clássico de David Lean, mas conhece a fama de Rio Kwai, que ganhou todos aqueles Oscars em 1957. Navarone talvez permaneça mais secreto, mas há 60 anos, no começo dos anos 1960, foi um extraordinário êxito de público. A guerra como aventura - na trilha aberta pelo longa escrito por Carl Foreman e realizado por J. Lee Thompson veio mais tarde Os Doze Condenados, de Robert Aldrich, e todos esses filmes arrebentaram na bilheteria. Navarone eternizou-se em cartaz nos cinemas brasileiros. Naquele tempo não havia as janelas de distribuição - cinema, home vídeo, TV. Se havia interesse do público, o filme ia ficando.

Nascido numa família judaica modesta, Foreman pertenceu aos quadros do Partido Comunista Americano, no período de 1938 a 42, o que lhe valeu mais tarde problemas durante o macarthismo. Chegou a ser incluído na lista negra e exilou-se na Inglaterra. Como roteirista, adquiriu prestígio associado ao produtor - e futuro diretor - Stanley Kramer. Para ele escreveu O Invencível, uma história de boxe que Mark Robson dirigiu e transformou Kirk Douglas em astro, em 1949, e principalmente Matar ou Morrer, o western de Fred Zinnemann que valeu a Gary Cooper o Oscar de melhor ator de 1952 - o segundo do astro -, além de ter sido um dos raros filmes que, na época, ousaram apontar o dedo acusador contra a caça às bruxas do senador McCarthy. Mais alguns anos e Foreman e Michael Wilson escreveram o roteiro vencedor do Oscar de A Ponte do Rio Kwai, mas, como ambos estavam na lista negra, o crédito foi para o autor do livro, Pierre Boulle.

Por volta de 1960, o astro Douglas e o produtor e diretor Otto Preminger compraram brigas na indústria para garantir que o blacklisted Dalton Trumbo ganhasse o crédito nos roteiros de Spartacus e Exodus. Fizeram história. A lista negra caiu e Foreman pôde assinar livremente o roteiro de Os Canhões de Navarone, que também produziu. Tudo isso é história, que vale resgatar. Navarone baseia-se no livro de Alistair MacLean. Como Foreman nunca se cansou de dizer - morreu em 1984, a poucos dias de completar 70 anos -, seu tema sempre foi a luta do indivíduo contra um grupo, ou uma sociedade, que, por um motivo ou outro, se revela hostil. São caminhos sem volta - um contra todos. No caso de Navarone, o um é o grupo heterogêneo formado para destruir os potentes canhões que os nazistas instalaram numa ilha grega e que controlam o acesso ao Mar Egeu, dificultando as operações dos aliados. O grupo, predominantemente masculino (Gregory Peck, David Niven, Anthony Quinn, Stanley Baker, James Darren) inclui duas mulheres (Irene Papas e Gia Scala). Há um traidor entre eles e a revelação de sua identidade vem numa cena forte.

No Catálogo do American Film Institute, há um resumo das dificuldades que Foreman teve de enfrentar. O livro de MacLean surgira em 1957 e ele, no embalo de Rio Kwai, adquiriu os direitos. Alec Guinness, protagonista do David Lean - e vencedor do Oscar de melhor ator daquele ano -, entrou no pacote e foi o primeiro nome cogitado para o elenco. Logo surgiram boatos de que um grande astro de Hollywood - Cary Grant - estaria acertado. Os rumores na indústria mantiveram o projeto aquecido enquanto Foreman escrevia o roteiro e garantia a chancela da Columbia como empresa produtora e distribuidora. Em janeiro de 1960, o The New York Times anunciou as contratações de Niven, Peck e Quinn, e também que as filmagens começariam, no mês seguinte, na Grécia. A mesma reportagem confirmava Alexander Mackendrick como diretor.

Nascido em Boston, mas radicado no cinema inglês, Mackendrick firmou-se como um grande da comédia (As Oito Vítimas), antes de regressar aos EUA para fazer, com Burt Lancaster e Tony Curtis, um clássico do cinema contra a imprensa sensacionalista - A Embriaguez do Sucesso. As filmagens atrasaram e Mackendrick caiu fora, iniciando uma fase difícil de sua carreira, marcada por filmes de rodagem complicada, mas que viraram cults, Sozinho Contra a África eVendaval na Jamaica. Michael Anderson, de A Volta ao Mundo em 80 Dias, foi anunciado para substituí-lo, mas quem terminou contratado foi J. Lee Thompson. Naquele tempo, era um diretor interessante - Uma Sombra em Sua Vida, Sob o Sol da África, Marcados pelo Destino - que, só mais tarde, perdeu-se ao virar homem de confiança do astro Charles Bronson na sua fase de vigilante contra o crime.

Na trama, o grupo formado pela inteligência britânica inclui soldados aliados e gregos, cada um com uma especialidade. O capitão (Peck) é alpinista, o cabo (Niven) é especialista em explosivos, Quinn integra a resistência grega e é o que mais conhece a região, o garoto (James Darren) é atirador exímio e Irene Papas, que também integra a resistência, é sua irmã. Esse grupo complexo escala penhascos, infiltra-se em aldeias e é preso pelos nazistas, mas consegue escapar para concluir a missão. Numa narrativa de 158 minutos, a meia hora final caracteriza-se pelo suspense eletrizante - os plásticos explosivos dependem de um atrito para desencadear a onda de destruição que levará os canhões. O diretor Thompson esmera-se em mostrar o elevador chegando cada vez mais próximo do estopim, enquanto os navios aliados adentram o canal. Se a explosão não ocorrer, a carnificina será imensa na frota aliada.

Embora formatado para a ação, Os Canhões de Navarone não teria a marca de Carl Foreman se as entrelinhas da história não permitissem ao roteirista-produtor desenvolver temas que lhe eram caros, como lealdade e traição e os vínculos que se estabelecem entre pessoas tão diferentes entre si. Mallory, o capitão, coloca a missão acima de tudo e todos. Tem uma frase brutal - "A única maneira de vencer a guerra é sendo tão cruel como o inimigo." Responsabilidade, ética - é Mallory quem propõe a execução sumária de um ferido que retarda o grupo. A revelação da identidade de quem traiu ocorre em uma cena cuja secura é radical. Bangue-bangue - não existem palavras capazes de absolver quem quase destrói a missão, mas não é ele quem, nesse caso, faz justiça. Mais que o tema do herói e do traidor, o filme desenvolve os temas da coragem e da covardia, e a questão é que o fato de ser covarde não impede o personagem de David Niven de ser herói. Do extenso elenco de astros e estrelas de Os Canhões de Navarone, é ele quem rouba a cena e permanece no imaginário do público.

Ação, ação, ação, e o grupo fica cada vez mais enxuto à medida que mortos e feridos ficam pelo caminho. Não é por ser movimentado que o filme deixa de ser reflexivo. A consequência foi que, a par do excepcional sucesso de público, Navarone foi referendado pela crítica e ganhou várias indicações para o Oscar, incluindo para melhor filme e diretor, mas era o ano de Amor, Sublime Amor/West Side Story e quem levou foi o musical de Robert Wise e Jerome Robbins. Navarone ganhou somente um prêmio da Academia - o de melhores efeitos especiais. Dois anos depois, Foreman voltou à guerra, agora como roteirista e também diretor. The Victors/Os Vitoriosos acompanha um pelotão de soldados aliados que avança pela Itália, a partir da Sicília. O relato episódico poderia fazer lembrar o Roberto Rossellini de Paisà, se a influência assumida não fosse do escritor John Dos Passos, em USA. Ao invés de contar uma história linear, Foreman avança com personagens que vão se encadeando e desaparecendo - as histórias individuais dissolvem-se no todo.

Homens e mulheres, e elas são simplesmente algumas das maiores estrelas da época - Jeanne Moreau, Romy Schneider, Melina Mercouri, Senta Berger, Rosanna Schiaffino, Elke Sommer. Douglas Brode considera Os Vitoriosos um dos maiores e mais originais filmes antiguerra do cinema, mas quando o investimento não compensou na bilheteria, a Columbia, que ganhara rios de dinheiro com Os Canhões de Navarone, achou-se no direito de picotar o filme em busca de uma narrativa mais convencional. Misturando material filmado com cenas de arquivo, Foreman fala da solidão de homens e mulheres em combate. Uma cena é de cortar o fôlego. A execução do soldado Slovik, único norte-americano executado por deserção na 2.ª Guerra. Um campo de neve, um pelotão, um homem amarrado ao poste - ecos de Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick, e no Foreman ainda tem a trilha. Os tiros são abafados pela voz de Frank Sinatra que canta Have Yourself a Merry Little Christmas. Nunca houve um Natal mais pungente. Os Vitoriosos foi um daqueles filmes que sumiram na noite dos tempos.

De volta a Navarone, vale lembrar que, no ano seguinte, Gregory Peck ganhou o Oscar pelo papel de Atticus Finch em O Sol É para Todos/To Kill a Mockingbird, de Robert Mulligan, como o advogado que dá lições de cidadania aos filhos, no racista Sul dos EUA. Também em 1962, Irene Papas foi ovacionada em Cannes como a Electra de Michael Cacoyannis, no primeiro filme da trilogia de tragédias gregas do cineasta - seguiram-se As Troianas e Ifigênia. Cacoyannis era ligado sentimentalmente a Irene. Não é demais pensar que, por meio dela, tenha chegado a Anthony Quinn, com quem fez Zorba, o Grego, sendo indicado para os principais Oscars de 1964 e vencendo os de direção de arte e fotografia em preto e branco.

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Estadão
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