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Clássico do Dia: 'O Desprezo' é um retrato de como o amor se transforma em indiferença

Todo dia um longa será destacado pelo crítico do 'Estadão', como este protagonizado por Brigitte Bardot, um dos maiores filmes de Jean-Luc Godard

10 jul 2020 - 12h26
(atualizado em 29/10/2020 às 00h57)
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Em anos praticamente sucessivos, 2016 e 18, imagens emblemáticas de dois filmes de Jean-Luc Godard ilustraram o cartaz do Festival de Cannes. Primeiro foi a de O Desprezo, de 1963, a Villa Malatesta, em Capri. "Está tudo ali. Os degraus, o mar, o horizonte, o homem que ascende em direção ao seu sonho, em uma luz quente do Mediterrâneo que torna tudo dourado. A imagem é uma reminiscência da frase atemporal de Michel Mourlet usada no começo do filme - 'O Cinema substitui nosso olhar espantado e fixo por um mundo em harmonia com nossos desejos", segundo o anúncio oficial do festival.

Dois anos depois do cartaz com Le Mépris, foi Pierrot le Fou, de 1965, lançado no Brasil como O Demônio das Onze Horas. Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, cada um em seu carro, em direções opostas, beijam-se. São filmes cuja importância para o cinema ultrapassa o significado artístico, e esse já é enorme. Evocam a intimidade de Godard, que no começo dos anos 1960 se ligou a Anna Karina. Embora baseado no romance de Alberto Moravia, O Desprezo é, ou também é, sobre a crise no casamento de ambos. Na volumosa biografia de Godard por Antoine De Baecque (Ed. Grasset, 2010), o autor reproduz declarações de Anna dizendo que frases que o diretor colocou na boca de Brigitte Bardot eram dela, mas mais que tudo a maneira de dizer as coisas. Brigitte, por sinal, queixou-se que Godard lhe impunha um comportamento glacial, estatuesco, nas cenas de agressão verbal. Ela queria se soltar, ele a refreava. Pensava na Karina. A crise, a derpedida - Pierrot le Fou foi a última parceria.

Cada crítico terá seu Godard e, ao longo dos anos 1960 - até hoje -, ele foi o grande revolucionário da tela. Como homenagem ao grande crítico gaúcho, vale lembrar o que dizia Jefferson Barros - "(Luchino) Visconti é a maneira clássica de fazer cinema revolucionário, (Joseph) Losey, a maneira revolucionária de fazer cinema clássico, e Godard, a maneira revolucionária de fazer cinema revolucionário". A chacun son Godard. O do autor do texto é O Desprezo, o que não deixa de carregar certo paradoxo. É o filme 'clássico', como realização, do diretor. A sua forma de fazer uma superprodução de US$ 5 milhões, o que representava muito mais dinheiro na época - umas dez vezes mais que o filme mais caro que ele havia feito.

Foi também a rodagem mais tumultuada da carreira de Godard, já que os paparazzi nunca deixaram de correr atrás de Brigitte Bardot, as iniciais BB, na sua época de grande estrela e um dos corpos mais desejáveis do planeta. Um dos? Por que não o mais? Godard, aliás, tinha plena consciência de estar encarando o mito. Brincou com seu fotógrafo, Raoul Coutard, que estavam inventando um novo sistema, o FesseColor, que, em bom português, quer dizer BundaColor. Consta até que a única briga de Godard com Michel Piccoli no set foi um pouco por causa disso. Por contrato, ele tinha de mostrar Brigitte nua. Na cena em que ela toma sol no terraço, suas nádegas estão cobertas por um livro em cuja capa se lê 'Entre sem bater'. Piccoli tentou virar o livro para impedir a leitura. Godard foi veemente - "Surtout pas".

De jeito nenhum. No fim dos anos 1950, uma nova geração se estabelecera no cinema francês, substituindo a geração anterior, que um de seus arautos - François Truffaut - fustigou como 'cinema de papai'. Mas, passada a curiosidade inicial, o público reagiu, e mal. Pode-se argumentar que o novo sempre assusta. Os filmes comçaram a fracassar na bilheteria. Os 'velhos' exultavam - consideravam a Nouvelle Vague cada vez mais 'onda', cada vez mais 'vaga'. Mas Godard adquirira prestígio. Aceitou a proposição para fazer O Desprezo. O filme reunia invertidores da França (Georges de Beauregard), da Itália (Carlo Ponti) e dos EUA (Joseph Levine). Esse último queria que o filme fosse feito com Frank Sinatra e Kim Novak. Ponti tentou impor sua mulher, Sophia Loren (e Marcello Mastroianni). Godard e Beauregard propuseram Brigitte Bardot, sem saber se ela aceitaria. Godard fez o que nunca tinha feito. Enviou-lhe um texto de mais de 100 páginas com o que queria fazer, e sobre sua personagem.

Brigitte, a princípio, desdenhou - era a própria velha onda. Tinha muito a perder, quase nada a ganhar. Mas talvez tenha sido por isso que aceitou. Os paparazzi, que ainda regurgitavam o efeito Cleópatra - correndo atrás do casal adúltero Elizabeth Taylor/Richard Burton - prepararam-se para novo round. BB! As filmagens ocorreram em Roma e Capri. A estrela vivia assediada pela imprensa, principalmente fotógrafos. Para complicar, estava sozinha - chegou a trazer os pais da Frasnça -, porque o então namorado, Sami Frey, estava distante, comprometido com outra filmagem. Andava deprimida, chorava muito, irritava-se (com os paparazzi), mas foi profissional. Na verdade, os problemas de Godard foram com o astro americano Jack Palance, dos filmes de Elia Kazan e Robert Aldrich. Palance, um ator do Método, ressentia-se do método gordardiano de trabalho. Kazan, que veio visitar o set, também. Vendo Godard no trabalho, ele se admirou com a sua ausência de planos de cobertura e a despreocupação com o eixo. A situação chegou a um ponto em que Palance não queria falar com ninguém. O lendário Fritz Lang, que fazia o diretor do filme dentro do filme, achava melhor assim. Para ele, Palance era um chato de galocha.

O Desprezo é sobre Paul Javal/Michel Piccoli, contratado para reescrever o roteiro de uma versão da Odisseia que está sendo filmada por um mestre alemão, Lang (no próprio papel). Paul é casado com uma bela mulher (Camille/Brigitte), que passa a ser assediada pelo produtor, Prokosch/Palance. Paul empurra Camille nos braços de Prokosch e, no final, a vê partir. Godard tinha a maior admiração pela escrita de Moravia. Considerava-o, segundo De Baecque, o equivalente de Joseph L. Mankiewicz no cinema de Hollywood - alguma coisa de sutil, refinado, a mais bela prosa a serviço de personagens que afundam. Na origem do romance está uma história real que outro grande escritor - Vitaliano Brancati autor de O Belo Antônio - contou a Moravia. Ele trabalhava no cinema somente para oferecer à mulher a casa dos sonhos dela, e quando conseguiu levantar o dinheiro o casamento havia acabado. Moravia somou a desventura de Brancati à própria experiência quando trabalhou na adaptação de Homero que resultou em Ulisses, de Mario Camerini, com o astro Kirk Douglas, de 1953.

É a anatomia do fracasso de um casamento. A crise dos sentimentos. O filme antonionesco de Godard. Como o amor se transforma em indiferença e até desprezo. Godard estava vivenciando esse processo na relação com Anna Karina. Transformou o processo em criação, a história de um homem que sabe que está perdendo a mulher. A presença de Brigitte é pivotal. Desde E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, de 1956, ela povoava as fantasias das plateias masculinas. Na Odisseia, Ulisses vaga por dez anos, na tentativa de voltar para casa, em Ítaca. A mulher, Penélope, nunca deixa de esperá-lo, desfazendo à noite o que teceu de dia, porque no fim dessa atividade interminável terá de escolher um marido. Na ficção godardiana, a mulher moderna - Brigitte - não espera, mas isso é porque o homem moderno - Piccoli -, com seu comportamento permissivo (inglório?), também não é Ulisses. Só resta a Fritz Lang realizar sua versão da Odisseia, no cenário majestoso de Capri, com estátuas em lugar de gente.Era, desde o início, o conceito - transformar Brigitte, uma das mulheres mais sexies do mundo, numa fria estátua de mármore. Dessa forma, Godard afronta, e enfrenta, o mito para seguir com seu projeto autoral, subvertendo, desde o interior, uma produção 'hollywoodiana'. Apesar do custo elevado para os padrões do cinema francês da época, o filme, como destaca De Baecque, foi feito com simplicidade - com economia de meios e grande eficácia. Sendo um filme sobre o casal, é também sobre o cinema, seus bastidores. É famosa a cena em que, ao fim de uma discussão com Lang e Paul, Prokosch reage brutalmente - "Sempre que ouço falar em arte eu pego a caneta e me preparo para asssinar o cheque." Para colocar o espectador dentro do próprio ficcional, Godard (e Coutard) iniciam O Desprezo por um dos planos-sequências mais belos do cinema. Tudo já está ali, o décor e a vida, a realidade e a fantasia.

Essa fábula de desintegração, sobre a dificuldade e até impossibilidade de erigir o mundo sonhado e fazê-lo real tem ainda uma quinta personagem, além do roteirista, sua mulher, o produtor e o velho cineasta. Como se falam diversas línguas no set fictício, há uma figura que faz a junção de todas as demais, a tradutora, Francesca Vanini. Esse nome não é por acaso e encerra uma dupla homenagem a Roberto Rossellini, por meio da citação a Francisco, Arauto de Deus e Vanina Vanini, de 1950 e 61. Ela é interpretada por Giorgia Moll, atriz de Mankiewicz em Um Americano Tranquilo, de 1957, e que participou de alguns filmes de aventuras mitológicas na Itália por volta de 1960. Amorosa de Paul, respeitosa de Lang, invejosa da beleza de Camille, altiva perante Prokosch, Francesca cumpre o papel da dançarina do templo de O Tigre da Índia, do próprio Lang, de 1958, faz a ligação entre os homens e os deuses. Lang adorou a experiência. Escreveu para Piccoli, de quem se tornou amigo, uma carta que De Baecque reproduz na biografia de Godard. Vale transcrever o trecho sobre o diretor.

Diz Fritz Lang - "Ele (Godard) tenta com sinceridade e um grande senso de responsabilidade continuar e avançar o que a minha geração tentou fazer no período silencioso e no começo do sonoro. Tenho a impressão de que Godard busca seu estilo pessoal, enquanto eu estive sempre mais interessado no conteúdo das histórias que queria contar. Estou certo de que ele não faz concessões e sei, por experiência própria, que quem trilha caminhos novos encontra sempre a resistência de produtores que preferem destruir aquilo que não compreendem." Lang e Ghodard participaram depois de uma histórica emissão da série Cineastes de Notre Temps, de André S. Labarthe, O Dinossauro e o Bebê, definida como 'documento excepcional sobre a paixão de cinéfilos, além de uma grande lição de cinema." A paixão de cinéfilo transparece num detalhe que encontra ressonância em outro filme da série Clássico do Dia. Como Dean Martin em Deus Sabe Quanto Amei/Some Came Running, de Vincente Minnelli, de 1959, e numa dupla homenagem ao astro e ao grande diretor, o roteirista interpretado por Piccoli porta sempre chapéu.

Mas Lang, infelizmente, estava certo. Presente à primeira projeção de O Desprezo, Truffaut entusiasmou-se e definiu o filme como um dos melhores de Godard - um Viver a Vida (de 1962) em cores, calmo e triste. Já as reações de BB e dos produtores foram desastrosas. BB considerou o filme inacabado, Levine disse que pagou caro pelo corpo dela - US$ 1 milhão - e exigiu mais cenas de nu. Godard, depois de muita polêmica, cedeu e acrescentou mais três minutos de nudez à montagem, mas filtrando o corpo desejado nas cores vermelho, branco e azul - da bandeira francesa, de certa forma antecipando Krzystof Kieslowski e a trilogia das cores. O resultado, somado ao tema composto por Georges Delerue, criou o que De Baecque define como poema irreal para uma deusa grega. Godard, apesar das dificuldades - das pressões -, venceu a parada. Fez seu filme 'narrativo', 'tradicional', um dos maiores, senão o maior. Mas talvez tenha sido como reação a O Desprezo que ele propôs, no ano seguinte, Uma Mulher Casada, mais próximo do seu estilo desconstruído habitual, com Macha Mérril.

Onde assistir:

  • À venda em DVD
Estadão
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