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Clássico do Dia: 'O Açougueiro' é uma história de amor irrealizado

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este no qual Claude Chabrol assimilou a influência de Alfred Hitchcock e Fritz Lang e a maturou num estilo próprio

25 jun 2020 - 05h12
(atualizado em 28/10/2020 às 23h48)
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Sempre haverá controvérsia na abordagem crítica dos grandes autores da nouvelle-vague. Jean-Luc Godard se dedicou tanto a descontruir a narrativa tradicional, buscando a maneira revolucionária de fazer filmes revolucionários, que se torna quase impossível acreditar que O Desprezo, de 1963- seu filme mais clássico, ou tão clássico como um filme dele consegue ser -, seja o maior de todos. François Truffaut pode ter-se convertido num cineasta burguês, mas teve grandes filmes no currículo - Jules e Jim, o Garoto Selvagem. E assim seria possível garimpar os grandes filmes de Eric Rohmer (Minha Noite com Ela), de Jacques Démy (Lola), de Rivette.

Desse, seria um filme mais tardio, já savasnçado nos snos 2000 - Ne Touchez Pas la Hache, de 2007. Mas acima de todos talvez esteja Claude Chabrol, não o Chabrol da primeira hora, de Le Beau Serge/Nas Garras do Vício e Os Primos, nem o que, ao longo dos anos1960, se manteve ativo filmando não importa o quê - o segredo, ele dizia, era o como. O grande, o maior Chabrol, foi aquele que, num curto período, no biênio 1969/70, realizou três dos maiuores filmesda história.

Alguém duvida? A Mulher Infiel, A Besta Deve Morrer, O Açougueiro. Chabrol assimilou a influência de Alfred Hitchcock e Fritz Lang, e a maturou num estilo próprio, clássico. A Besta Deve Morrer baseia-se em Nicholas Blake. Conta a história de um pai desesperado, consumido pelo desejo de vingança contra o homem que matou seu filho. Foi um acidente, mas, quando o localiza, ele descobre que esse homremé um monstro - mereceria, de qualquer maneira, a morte. Lá pelas tantas, os personagens discutem literatura, e parece perfeitamente natural, pois o filme é francês, e os franceses quase sempre são letrados. Chabrol homenasgeia seu corroteirista. O comentário é do tipo - "Pode-se não gostar do nouveau-roman, nem de Paul Gégauff, mas le é inegavelmente profundo." No filme seguinte, o maior de todos, Le Boucher, Hélène é professora na província. Fala a seus alunos sobre literatura, e Balzac. Diz que ele foi um escritor francês do século 19, autor de uma obra vastíssima, abarcando uma visão totalizadora da sociedade do seu tempo.

A frase, que pode passar despercebida, não poderia ser mais reveladora. Hélène, interpretada pela mulher de Chabrol na época, Stéphane Audran, está falando mesmo de Honoré de Balzac ou do marido da atriz? Pois ele, de forma muito consciente, se dedicou a construir, uma Divina Comédia no cinema, a exemplo do escritor com suas cenas da vida burguesa. Coincidência ou não, Chabrol - que morreu em 12 de setembro de 2010, aos 80 anos - foi, como cineasta, tão prolífico quanto Balzac. E, assim como o escritor fez da sua literatura uma crtônica da burguesia que floresceu na França após a queda de Napoleão Bonaparte, Chabrol também fez de seus filmes a crônica da V República Francesa, aprovada pelo referendo de 1958, justamrente o ano de seus primeriros longas.

O Açouguerito começa com uma celebração, uma festa de casamento, que Chabrol utiliza para mostrar como se comporta a burguesia provinciana. Com exceção de Hélène e Popaul, interpretados por Stéphane e Jean Yanne, e do cantor Antonio Passalia, todos os demais são naturais - ou não profissionais -, moradores de Trémolat, na Dordonha, onde ele filmou (e que fazem os próprios papeis). Logo ele isola a professora e o açougueiro, que serão seus personagens. Passeiam pela cidade, conversam, aproximam-se. O clima é de tranquilidade, um início auspicioso, mas enganoso. Logo aparece um corpo jovem, depois outro. Uma série de assassinatos. Mais de dez anos antes, quando ainda era crítico - na Cahiers du Cinéma -, Chabrol escreveu, em parceria com Eric Rohmer, um livro sobre Alfred Hitchcock, Os Primeiros 44 Filmes. O diferencial da abordagem é que ambos privilegiavam a formação católica do autor, investigando como isso repercutiu na obra. Convertido, ele próprio, em autor, Chabrol, diferentemente de Rohmer, nunca mostrou preocupação religiosa, até A Besta Deve Morrer. Na época, deu uma declaração que Michael Walker usa em seu livro sobre ele (uma parceria com Robin Wood). "Tenho a impressão que vou me tornar cristão novamente."

Só um parêntese - A Besta constroi-se sobre uma citação bíblica, "É preciso que a besta morra, mas o homem também, e um e outro devem morrer". Para acentuar a gravidade, lá Chabrol se vale, na trilha, dos Quatro Cantos Sérios de Brahms. Hitchcock trabalhava o suspense, não o mistério. Com raras exceções, quase nuunca se fazia a pergunta - quem é o assassino? - em seus filmes, e mesmo assim mantinha o espectador tenso (com medo?).

No Chabrol, a identidade do assassino é mantida secreta até a segunda metade. É bom esclarecer que o texto terá spoiler. Para se falar sobre a tragicidade dessa história de amor é preciso fornecer detalhes. Uma cena na padaria, outra na açougue, vão mostrando como as mortes repercutem na comunidade. Mas, mesmo nelas, Chabrol continua isolando sua dupla, como se apenas reles lhe interessassem no mundo.

No seu cinema, é frequente a figura do intruso que chega para subverter a ordem. Popaul tenta vencer a resistência da professora desiludida, tenta penetrar na sua intimidade. Como professora, Hélène faz uma excursão com seus alunos às cavernas da região, que abrigam vestígios do homem Cro-Magnon. A gruta com suas imagens primitivas de caça está ali desde o começo - aparece nos céditos -, como um lembrete psicanalítico sobre a força da ancestralidade. O homem moderno construiu uma capa civilizatória, mas segue bárbaro - não é o que estamos constatando no século 21? A verdadeira pergunta que percorre o filme é - o homem moderno realmente conseguiu superar, ou domar, seu instinto primitivo? Pois Popaul abriga essa força destrutiva dentro dele. O diálogo informa. Veio de uma família desestruturada, serviu o Exército e participou das guerras coloniais - na Argélia, na Indochina - e tudo isso desenvolveu uma enfermidade mental, uma deformidade de caráter.

Não é açougueiro por acaso. Possui uma doentia atração pelo sangue. Diante dos crimes, ele cita o horror da guerra, mas um cliente do açougue retruca que a guerra é uma coisa e "isso (as mortes) é selvageria." Numa cena, Popaul acompanha Hélène e os alunos no bosque. Enquanto as crianças colhem folhas, eles converesam e ela fala da sua desiluçãso amorosa. Popaul pergunta o que Hélène fará, se ele a beijar. Ela responde que nada, mas pede que não o faça. Ser professora é um substituto para a ausência da família, para os filhos que decidiu que não terá. Popaul evoca M, o vampiro de Dusseldord, no clássico de Fritz Lang. A mesma compulsão de matar. É outro monstro, como a 'besta' que Jean Yanne também interpretou no filme anterior do diretor. Chabrol criou muitos monstros em sua carreira, e foram sempre representativos da burguesia, mas ele é o mais 'humano'. Ganha a confiança de Hélène. Ganha dela, como presente de aniversário, um isqueiro que mais tarde será a peça incriminatória. Logo após o presente, há um baile com motivo de época. Popaul veste-se com figurino Luís XV, Hélène não. Vivem em mundos, em tempos diferentes. Ele busca sua redenção no amor que ela não pode lhe dar.

Na gruta, durante uma pausa, as crianças merendam e o sangue de uma nova vítima pinga no sanduíche que uma delas está comendo. O filme torna-se noturno. Hélène encontra o isqueiro no cenário do crime e o esconde. Em outra cena, Popaul desce a escada e ingressa em uma zona de sombra. Poderia ter sido um belo romance, mas o que vem, na penumbra da sala, é uma penosa revelação. Ele encontrou seu isqueiro entre as coisas dela. Abre seu coração - "Sinto uma vergonha terrível. Sei que lhe causo horror, e isso eu não posso aceitar." No hospital, quando Hélène o beija - pela primeira e última vez - é como uma despedida. O filme termina num amanhecer sem esperança, com Hélène irremediavelmente sozinha.

Como tema, O Açougueiro gira em torno ao casal, com todas as suas implicações - amizade, atração, amor, culpa, recusa. Mas essa história de um homem e uma mulher que rumam diretamente para a morte é também, e acima de tudo, a história de uma cidade, de um país que dois anos antes, acabara de sufocar o ímpeto revolucionário de Maio de 68. Por por mais que a estrutura policial evoque Hitchcock, o tom sombrio é languiano. A importância do destino regendo essas vidas, o mundo de presságios e violência, de ansiedade e morte, tudo remete a Fritz Lang. A sombra de M, que também era o retrato de um tempo, o da Alemanha que iria alicerçar o nazismo. O expressionista Lang filmou em preto e branco, Chabrol e o fotógrafo Jean Rabier, em cores. Despejaram amarelo ouro sobre sua história de amor irrealizado. Um pungente amor de outono.

Onde assistir:

  • Looke
Estadão
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