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Clássico do Dia: No auge da contracultura, 'Se...' retratou uma revolta estudantil

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão', como este de Lindsay Anderson que foi premiado no Festival de Cannes de 1969

28 mai 2020 - 08h10
(atualizado em 27/10/2020 às 17h48)
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No célebre maio de 1968, os estudantes foram às ruas de Paris, num ímpeto revolucionário que se estendeu por toda a França, e pelo mundo. Os estudantes esperavam ganhar o apoio da classe trabalhadora, mas o então presidente, o General De Gaulle, negociou um acordo com a central sindical. Em Cannes, estava começando o festival, que foi interrompido pela segunda vez em sua história. Lá atrás, o que seria o primeiro festival em 1939, já havia sido interrompido pela guerra relâmpago na Polônia. (Agora, pela terceira vez, o festival não está sendo interrompido, mas cancelado, por causa da pandemia.)

Durante todo aquele ano, arderam os campi das universidades. No Brasil, houve enfrentamentos nas ruas com tropas do Exército. O assassinato de Edsdon Luiz de Lima Souto virou um marco da luta estudantil, e da resistência no País. Talvez com um tanto de oportunismo, para se valer das condições do momento, o inglês Lindsay Anderson foi a Cannes, no ano seguinte, quando o festival voltou a ser realizado, com um filme sobre uma rebelião de estudantes. Ganhou o Grand Prix com o longa intitulado Se..., assim mesmo, com três pontinhos. If.... Para sua informação, a Palma de Ouro deixou de ser outorgada em 1964 e só voltaria em 1975. E, só para lembrar, em 1969 Glauber Rocha ganhou o prêmio de direção por O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, que dividiu com o checo Vojtech Jasny, de Crônica Morava.

Se... causou espanto, admiração. No Brasil, ao contrário de outros filmes da competição daquele ano - Z, de Costa-Gavras, que venceu o prêmio do júri -, conseguiu chegar aos cinemas. (A censura do regime militar colocou o Costa-Gavras no índex.) Estreou na mesma época de outro clássico - da contracultura -, Sem Destino, de Dennis Hopper, escrito por Hopper e Peter Fonda (com Terry Southern), e interpretado pelos dois, mais Jack Nicholson. Se... passa-se na College House, uma instituição inglesa de ensino para os filhos da elite. O filme começa com a chegada dos estudantes para mais um ano letivo - mas não será um ano como os outros. Entre os novatos está Mick Travis, e foi o mau comportamento do personagem que projetou o ator Malcolm McDowell, levando Stanley Kubrick a escolhê-lo para ser o Alex de A Laranja Mecânica, de 1971.

Travis forma um trio inseparável com outros dois estudantes, Johnny e Wallace. Desafiam o regulamento interno e as regras impostas pelos veteranos. Fogem do colégio, roubam uma moto e enchem a cara com a garçonete do pub. Na volta, são punidos com chibatadas, mas não se emendam. Durante um exercício militar, disparam contra o capelão. Nova punição. Na festa de fim de ano, em presença do convidado de honra, um general, incendeiam a sala. Ele convoca suas tropas. A College House vira um campo de batalha e, do telhado, Travis, Johnny, Wallace e a garçonete atiram. O reitor tenta impedir o confronto - leva um tiro na testa.

Há mais de 50 anos, o ex-crítico Lindsay Anderson negou o oportunismo, dizendo que o filme já estava em gestação, e até sendo filmado, durante os motins estudantis de 68. Seria outro caso de premonição, mesmo tendo saído depois, como A Chinesa, de Jean-Luc Godard, de 1967. A crítica, mesmo exaltando a energia do filme, dividiu-se quanto ao significado da explosão. Seria só a manifestação do desejo de liberdade de uma minoria romântica ou um gesto realmente político? Na época, não houve quem não lembrasse, quase sempre para desclassificar Se..., outra revolta estudantil, não menos virulenta e igualmente contestadora, no clássico Zero de Comportamento/Zéro de Conduite, de Jean Vigo, de 1932. Filho de um anarquista e ele próprio um espírito livre e inovador, Vigo foi biografado por Paulo Emílio Salles Gomes e até hoje o livro, que surgiu na França - no Brasil foi editado pela Paz e Terra em 1984 -, é referência sobre como estudar um autor e sua obra.

Embora não seja daqueles 'clássicos' que circulam, a toda hora - a distribuição internacional foi da Paramount -, Se... consegue o prodígio de ser uma construção lógica (e precisa), mas num formato irreverente, como se os estudantes realmente assumissem o poder. "A guerra é o último ato de criação possível", reflete o trio de amigos e até chegarem lá, o filme, como ato de transgressão, alterna realidade e fantasia, cor e preto e branco, desejo reprimido e a satisfação do orgasmo, tudo numa alegria selvagem que fez de Se... uma experiência única para o público, predominantemente jovem, que lotava as sessões (e até aplaudia, o que não só era raro, como perigoso em 1970, quando chegou às salas do Brasil). É impossível não destacar a contribuição do diretor de fotografia checo Miroslav Ondricek, que foi o operador preferido de Milos Forman, de Os Amores de Uma Loira a Na Época do Ragtime, ou seja, desde a primerira fase europeia até Hollywood.

Num Guia de Filmes do extinto INC, Instituto Nacional de Cinema, um grande crítico hoje pouco lembrado, Paulo Perdigão - autor de Western Clássico, sobre o caso Shane/Os Brutos Também Amam, de George Stevens, de 1953 -, minimizou o alcance político, mas não a catarse, comparando que era possível vibrar com Travis como com Humphrey Bogart derrotando nazistas em alguma velha produção hollywoodiana. Levantou a possibilidade de ser o diretor um moralista intimidado pelo próprio tema. Moralista, ele talvez fosse, ou era, mas na vertente de Voltaire. Provou-o o filme seguinte, O'Lucky Man/Um Homem de Sorte, de 1973, com McDowell (de novo) como um aventureiro picaresco, um Cândido contemporâneo. Dada a natureza do personagem, não é despropositado pensar que possa ter dado o nome ao motorista de táxi de Martin Scorsese. No vencedor da Palma de Ouro de 1976, o taxi driver de Robert De Niro chama-se, também, Travis.

Até onde a memória registra, Se... é pródigo em referências a Luís Buñuel, Jean-Luc Godard e Joseph Losey. Possui cenas que eram ousadíssimas pela voltagem erótica - a garçonete nua, tocando flauta numa representação ardente de felação. É bom lembrar que a prestigiada revista Cahiers du Cinéma, que sinalizava, como um farol, para o pensamento crítico mais avançado daquele tempo, tinha um solene desprezo pelo cinema britânico. Achava-o menos que nulo, não reconhecendo o free cinema, do qual Lindsay Anderson, como Tony Richardson e Karel Reisz, foi um dos nomes importantes. Least, but not last. O título não revelava só um desejo - 'se' os estudantes tomassem o poder, como teria sido o mundo? Também presta tributo ao escritor Rudyard Kipling e ao seu poema que exalta as virtudes morais do homem digno. Em fase de pandemia, e face ao descalabro que parece ter tomado conta do mundo - do Brasil? -, é legítimo continuar sonhando com Kipling, e Anderson. Se...

Onde assistir :

  • Amazon Prime Video
Estadão
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