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Clássico do Dia: 'Metrópolis' conquistou gerações com sua romantização das tensões sociais

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado'; longa de Fritz Lang teve números grandiosos, levando 310 dias e 60 noites para ser feito

26 mai 2020 - 09h37
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Sempre houve controvérsia sobre Metrópolis. Adolf Hitler ficou impressionado pelo filme e, anos depois, seu ministro da Propaganda, Josef Goebbes, tentou converter Fritz Lang no cineasta oficial do Terceiro Reich. Entre os seus contemporâneos, Luis Buñuel considerou Metrópolis visualmente brilhante, mas deplorou a pobreza do conteúdo. O escritor H.G. Wells foi mais longe. Disse que era impossível ver o filme como uma antecipação futurista séria - baniu-o de suas preocupações. Outro escritor, George Orwell, sempre admitiu ter sido influenciado por Lang. E a concepção da cidade do futuro com certyeza nutriu o Ridley Scott de Blade Runner, nos anos 1980. Nem que ele quisesse poderia negá-lo.

Com o tempo, criou-se a lenda do grande filme de Lang. O cineasta ainda realizou, no começo dos anos 1930, M, o Vampiro de Dusseldorf, antes de migrar, fugindo do nazismo, primeiro para a França e, depois, para os EUA. Em Hollywood realizou mais da metade de sua obra, mas os críticos - Peter Bogdanovich escreveu um livro sobre isso, Fritz Lang in America - nunca deram muito valor à fase norte-americana, que inclui, em 1955, um dos mais belos filmes já feitos - Moonfleet. Todos os filmes de Lang refletem a herança do expressionismo, movimento do qual foi um dos arautos no cinema. Com o tempo, a lenda de Metrópolis ficou cada vez mais nebulosa, porque não havia mais cópias confiáveis, em termos de duração e montagem.

No emblemátivo ano de 1984, que remete ao romance de antecipação de Orwell, o compositor Giorgio Moroder adquiriu os direitos do filme, colorizou seu suntuoso preto e branco com ajuda de computador e lançou a nova versão com uma trilha rock de sua autoria. Metrópolis virou um filme-concerto, o mais popular de Lang, que, a essa altura, não estava mais vivo. Morreu em 2 de agosto de 1976, aos 85 anos, em Beverly Hills - nascera em 5 de dezembro de 1890, em Viena, na Áustria. Foi ator de Jean-Luc Godard em O Desprezo, de 1964, como o diretor do filme dentro do filme. Naquele mesmo ano presidiu o júri do Festival de Cannes que outorgou o Grand Prix ao musical Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Démy. (A Palma de Outro deixou de ser distribuída desde aquele ano até 1974. Voltou em 1975.) Lang teria gostado de Metrópolis na revisão de Moroder? Dificilmente.

Ao morrer, o grande diretor já se havia distanciado bastante de Metrópolis. Considertava-o 'a bit silly, and a bit naive', com toda aquela baboseira do coração fazendo a ligação entre o capital e o trabalho, e do capital como cérebtro e o trabalho meramente como a mão. Eram ideias de sua então mulher, a roteirista Thea Von Harbou, que, ao contrário dele, aderiu ao nacional-socialismo e o 'socialistya' no nome do partido até hoje alimenta - no Brasil fantasias veem o nazismo como de esquerda. A confusão sempre fez parte da lenda. Hitler adorava o filme e, na estreia em Nova York, Metrópolis foi saudado como obra-prima, embora os críticos advertissem contra sua suposta mensagem 'comunista'. O próprio Lang lavava as mãos. Dizia, no fim da vida, que havia vivido o bastante para saber que o filme não se sustentava mais ('doesn't hang together well now').

Mas lá atrás parecia um assombro. Lang dizia que teve a primeira intuição do filme ao visitar Nova York pela primeira vez. Chegou de navio e impressionou-se, à distância, com as silhuetas dos arranha-céus recortados. Lang já havia feito todos aqueles filmes expressionistas baseados em mitos do romantismo alemão. As Três Luzes, A Morte Cansada ou Pode o Amor Mais Que a Morte?, Os Niebelungos. Gestara o sinistro Dr.Mabuse, que queria dominar o mundo. Ele passou boa parte de 1925 e 26 trabalhando em Metrópolis. O filme estreou no início de 1927 e, no ano seguinte, Lang voltou à ficção científica com A Mulher na Lua. Atribui-se a ele a contagem regressiva nos lançamentos espaciais - dez, nove, oito... Lang, pensando em termos de cinema, simplesmente achou que criaria mais tensão. Estava certo.

Foram necessários 18 meses para elaborar e construir os efeitos - avançados para a época. O experimentalismo está na origem do projeto. Lang e sua equipe de colaboradores - os fotógrafos Karl Freund, Günther Rittau e Walter Ruttman, os decoradores Otto Hunte, Erich Kertterlhut e KarlVollbrecht, os especalistas em efeitos Eugen Schufftan e Walter Scultze-Middendorf -, combinaram maquetes e cenários naturais. Admite-se que tenham sido usadas 30 mil trans(a)parências para construir na tela a monumentalidade da cidade futurista. Existe a cidade visível, com seus prédios, onde habita a elite, e o subterrâneo, com os escravos. Toda a arquitetura dramática gira em torno de cinco personagens. Freder é o senhor da cidade, dos escravos, das máquinas. Rotwang é o brilhante cientista que construiu as máquinas e está aperfeiçoando um novo robô que substituirá o trabalho humano. Há tensão entre os dois porque a mulher (morta) de Rotwang abandonou o marido para viver com Freder.

Há também o capataz Grot, que rejeita a insatisfação das massas. A angélica Maria - o nome é importante - quer proteger a massa de escravos e vive antecipando a chegada de um messias que redimirá os trabalhadores. Freder, na tentativa de controlar os escravos, ordena a Rotwang que dê a seu novo robô a aparência de Maria, que vira assim uma figura dual, ambivalente, na trama. E ainda falta o filho do patrão, tão sensível quanto o pai é brutal, e que desce ao subsolo para se transformar - para ascender (espiritualmente?). Apaixona-se por Maria. Torna-se o mediador que vai promover a harmonia e a união de todos.

Essa confusão ideológica e religiosa, a romantização das tensões sociais - da luta de classes -, seduziu não apenas Hitler como as gerações de espectadores que, ao longo do tempo, erigiram o culto a Metrópolis. É um filme grande, e um grande filme visual, mas tem seu limite e Lang sabia disso. Numa de suas últimas declarações sobre o próprio filme, diria - "Mrs. Von Harbou e eu tiramos partes relativas à magia e à ciência, o que foi um grande erro." Mas não responsabilizava a ex-mulher. Assumia que a decisão por tentar resolver um grave tema social de forma tão pueril era dele, por mais que tivesse sido influenciado.

Tudo em Metrópolis era - e continua - grandioso, e não apenas os prédios, as avenidas suspensas e os carros aerodinâmicos, que nunca deixaram de ser imitados, quando se trata de representar o futuro. Os números da produção, segundo Alfred Eiber em O Cinema de Fritz Lang, seguem superlativos, mais de 90 anos depois. Foram necessários 620 mil pés de negativo, 1,3 milhão de metros de positivo, 750 papéis secundários com crédito, a participação de 25 mil extras masculinos e 11 mil femininas, 1.100 cabeças raspadas, 750 crianças, 100 figurantes negros, 25 chineses. E foram construídos 50 automóveis de modelos especiais. A filmagem durou 310 dias e 60 noites. Rapidamente, a produção chegou a um milhão de marcos, uma fortuna, e outro milhão se tornou necessário. Criou-se o dilema - investir e arriscar o resultado, ou simplesmente contabilizar prejuízo do primeiro milhão.

Houve réplica e tréplica. Lang e seu produtor, Erich Pommer, protestaram quando o presidente do conselho de administração da UFA afirmou que o rombo de 5 milhões de marcos alemães estava levando a empresa à bancarrota. Lang e Pommer botaram a boca no mundo. O escândalo foi grande. Onde havia ido parar a diferença de 3 milhões de marcos? Com o tempo, o sucesso nos EUA e em outros países equilibrou as contas, mesmo que o filme não pudesse ser considerado um êxito financeiro. O prestígio de Metrópolis era de outra ordem. Artístico - Lang criou fama de visionário. O curioso é que, em 1927, Die Filmbühne fez uma enquete com seus leitores para saber quem era o maior diretor alemão. Fritz Lang, com 921 votos, ficou em segundo. Um cineasta hoje esquecido, Richard Erichberg, foi o primeiro, com quase 1200 votos.

Encerada sua carreira nos EUA - com Suplício de Uma Alma/Beyond a Reasonsable Doubt. Lang voltou à Alemanha em 1958 e fez o díptico O Tigre da Índia/O Túmulo Indiano, outro projeto caro. Seja pelo colonialismo cultural ou outro motivo, o público internacional estranhou os indianos falando alemão. O inglês teria sido mais tolerável, porque a Índia, afinal, integrou o império britânico. A crítica alemã caiu matando. Fritz Lang estaria acabado. Só na França, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e a revista Cahiers du Cinéma inteira, radicalizando a defesa do cinema de autor, viu o filme como a obra-prima que é. Paul Hubschmid, um arquiteto europeu, é contratado pelo marajá de Echnapur para construir um palácio para sua favorita, a dançarina do templo que ele quer transformar em rainha. O arquiteto e a prometida apaixonam-se e o marajá, devorado pelo ciúme, decide transformar o palácio em túmulo da amada.

Ao contrário de Jean Renoir (O Rio Sagrado, de 1950) e Roberto Rossellini (Índia, também de 1958), Lang não foi à Índia à procura de ensinsamentos milenares. Foi em busca de exotismo, excitação. Debra Paget tem uma dança em que encanta a serpente para não ser picada. É um momento único de erotismo, um sonho dos cinéfilos. Muito importante - nos subterrâneos do palácio, Hubschmid descobre os novos escravos, os leprosos que o marajá tirou das ruas e se rebelam, formando um exército de desvalidos. É a volta a Metrópolis, e com a cor. Destino, expressionismo, preocupação social, todo Lang está no filme. Embora a aventura fosse o objetivo, a Índia milenar impregnou-se nele. No desfecho, que também talvez seja utópico - mas menos irreal que o de Metrópolis -, o marajá descobre, com seu guru, que a humildade e a renúncia são atalhos para a felicidade e a paz.

O clássico de Fritz Lang, Metrópolis pode ser visto no Telecine.

Estadão
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