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Clássico do Dia: 'Domingo Maldito' não perdeu a capacidade de perturbar

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão', como esta obra de John Schlesinger, que conta a história de um triângulo ousado e que até hoje foge ao padrão dos relacionamentos

9 jul 2020 - 15h32
(atualizado em 29/10/2020 às 00h50)
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John Schlesinger gostava de contar a história da reclamação de seu pai, que sempre o apoiou nos momentos difíceis da vida, como quando assumiu a homossexualidade. Bernard Edward Schlesinger ficou muito orgulhoso quando John ganhou os Oscars de melhor filme e direção de 1969, por Perdidos na Noite/Midnight Cowboy. Só reclamou quando, na sequência, ele fez Domingo Maldito (1971), dois anos mais tarde. Não se conformou que o personagem do médico homossexual, interpretado por Peter Finch, também fosse judeu. "Por que, filho?" A família era judaica e, para o pai, parecia demais. Além de homossexual, judeu. Pode ser que a história seja vista hoje de um jeito diferente que há 50 anos, ou quase.

A homossexualidade masculina não fazia muito deixara de ser considerada crime na Inglaterra, e o cinema teve sua parte nisso. Em 1961, causou comoção o longa Victim, de Basil Dearden, com Dirk Bogarde como um respeitável advogado com chance de chegar a juiz, mas que se torna vítima de chantagem por sua ligação com um trabalhador gay. No Brasil, chamou-se Meu Passado Me Condena - nada a ver com a série de comédia interpretada por Fábio Porchat e Miá Mello. O drama retratado por Dearden calou fundo no público e até na crítica. Desencadeou acalorados debates no Parlamento, foi importante - decisivo - na mudança das leis. Só para constar, a legislação datava da época de Vitória e não contemplava mulheres pelo simples fato de que a puritana rainha achava que elas não seriam capazes de fazer aquilo.

As leis abrandaram-se, houve a explosão comportamental, Londres virou a Swinging London. A questão de gênero retratada no filme de Schlesinger envolvia, para o pai dele, uma questão de raça que poderia reacender velhos preconceitos. Talvez não estivesse de todo errado. Domingo Maldito conta a história de um triângulo ousado para a época e que até hoje, tanto tempo depois, ainda foge ao padrão dos relacionamentos. Um homem e uma mulher maduros, Finch e Glenda Jackson, que já ganhara o primeiro de seus dois Oscars - por Mulheres Apaixonadas, de Ken Russell, de 1970. Finch só receberia o dele, postumamente, em 1976, por Rede de Intrigas, de Sidney Lumet.

Dois homens e uma mulher, como no clássico Jules e Jim, de François Truffaut, de 1961, mas agora os dois homens têm uma ligação íntima e o mais jovem, Murray Head, também é amante da mulher. Mais que a homossexualidade, que já estivera em Perdidos na Noite e em um filme mais antigo do diretor - Darling, a Que Amou Demais, de 1965, pelo qual Julie Christie ganhou o Oscar -, Schlesinger aborda dessa vez a bissexualidade. Dr. Daniel Hirsch/Finch e Alex/Glenda dividem o corpo de Bob/Head. Não existem segredos entre eles. Dr. Hirsch e Alex sabem um do outro na vida de Bob, só nunca se encontraram. Aceitam o arranjo porque, no fundo, ambos temem perdê-lo. É o que está prestes as acontecer. De um domingo a outro, o rapaz manifesta o desejo de largar tudo, de deixar o país. Para o Dr. Hirsch e Alex isso pode significar a implosão da vida afetiva e sexual.

Domingo maldito -Maldito Domingo, em Portugal; o título original é Sunday, Bloody Sunday - concorreu a vários prêmios naquele ano. Como produção britânica, ganhou o Globo de Ouro de filme estrangeiro, foi indicado para o Oscar nas categorias de direção, roteiro, melhor ator e atriz. Fez o rapa no Bafta, o Oscar inglês, vencendo como melhor filme, diretor, ator, atriz e montagem. Ainda seriam necessários muitos anos, décadas, para que Hollywood aceitasse o beijo gay de Heath Ledger e Jake Gyllenhaal em O Segredo de Brokeback Mountain, pelo qual Ang Lee recebeu seu primeiro Oscar de direção, em 2006. O preconceito, com cereteza, teve o seu papel. Não adiantou o que disse Finch - "O que fiz (aquele beijo) foi pela Inglaterra."

Muito da fineza e perspicácia da análise humana e social de Domingo Maldito vem do roteiro assinado por Penelope Gilliatt. Foi uma reputada crítica de teatro no The Observer, de Londres. Na The New Yorker, alternou-se, como crítica de cinema, com a lendária Pauline Kael, cada uma escrevendo por um período de seis meses do ano. Penelope permaneceu no posto de 1967 a 79. Terminou demitida numa acusação de plágio num perfil de Graham Greene. Seguiu colaborando como ficcionista na publicação. Os estilos, de Kael e dela, não poderiam ser mais diferentes. Penelope era descritiva, integrando detalhes reveladores - da trama, dos personagens, das intenções - a uma estrutura romanesca digna da escritora que foi.

Foi seu único roteiro, adaptado do livro de estreia, One by One. Recebeu os prêmios da Associação dos Críticos de Nova York, da Writers Guild da América e da Inglaterra. Penelope teve relacionamentos com John Osborne, Mike Nichols, Edmund Wildson. Morreu de alcoolismo, em 1993. Entendia a dor e o sofrimento, bastava olhar-se no espelho, daí a sutileza das cenas, dos diálogos. A natureza do amor e da solidão é tratada sem sentimentalismo. A qualidadade da escrita e da direção combinaram-se no elogio da, digamos, rival de Penelope, Pauline Kael. Disse que Domingo Maldito era um romance feito filme. Em Perdidos na Noite, Schlesinger não rersistira a incorporar modismos visuais da época que quebram o realismo e fazem com que a saga de Joe e Ratso, revista hoje, tenha algo de datada, apesar das ousadias. Em Domingo, foi mais exigente, ou rigoroso, consigo mesmo.

Existem registros, incluindo as palavras do diretor de fotografia Billy Williams, de que Schlesinger ensaiou exaustivamente as cenas, dando liberdade de movimentos aos atores e só depois fazendo a marcação da câmera e da luz. Essa técnica - sua mise-en-scène? - é confirmada por Murray Head nos extras do Blu-ray. Ele chega a dizer que o diretor moldou o personagem em seu comportamento, porque Bob está evitando o tempo todo o confronto. Cada vez que Alex ou o Dr. Hirsch solicitam mais do que ele está disposto a conceder, Bob tende a sumir, daí sua disposição de buscar um caminho longe dos amantes. Zygmunt Bauman poderia ter-se baseado no trio para formular seu conceito dos amores líquidos, para tempos de consumo, em que nada é para sempre.

Críticos como Nick James formularam suas análises a partir da primeira frase do filme, quando o Dr. Hirsch atende um paciente que parece estar esperando o pior diagnóstico e ele recebe o telefonema de Bob. "Diga-me se está sentindo alguma coisa?" Ainda não sabemos nada, de ninguém, mas a frase vai repercutir depois. Encontra eco no que diz à filha a mãe de Alex, e quem faz o papel é Dame Peggy Ashcroft, dos filmes de Joseph Losey (Cerimônia Secreta) e David Lean (Passagem para a Índia). Ela diz algo como 'Não há nada que mereça o esforço (para se tentar evitar)", uma coisa em que a filha não acredita, porque ela, como Dr. Hirsch, está sentindo alguma coisa e é a própria fragilidade da sua vida se desintergrando. Poucos filmes da época analisam os sentimentos com tanta naturalidade, e com tanta perspicácia para as diferenças de gênero. É como se Schlesinger, e Gilliatt, estivessem 50 anos adiante do seu tempo, já pensando no público que veria o filme no futuro.

Deviam estar pensando mesmo. O telefone é importante instrumento, hoje teria de ser o celular, mas já se trocam mensagens por meio de um correio eletrônico. Numa cena, Daniel, mais íntimo, recebe Bob em casa com um beijo que ia muito além da possível representação hollywoodiana de um par gay. Schlesinger tinha conhecimento de causa para saber o que exigir de seus atores. O curioso é que Peter Finch, tão excepcional, não foi sua primeira escolha para o papel e ele chegou a testar Ian Bannen, que não se sentiu 'confortável' no beijo com Murray Head e não entregou o que ele estava querendo. Pela facilidade como evoluiu de um amante a outro, independentemente de sexo, Bob foi comparado ao Terence Stamp de Teorema, de 1968, que fazia sexo com toda a família - pai, mãe, filhos, até a empregada. (A forma definitiva dessa apropriação, transferida à casa, foi em Parasita, de Bong Joon-ho, mas essa é outra história.)

Não tem muito a ver comparar Schlesinger com Pier-Paolo Pasolini, que tinha uma agenda marxista (e religiosa, psicanalítica?), construindo uma parábola política sobre a destruição da família como condição para a superação e a transcendência. Schlesinger percorria uma vertente mais prosaica - mas será a palavra certa? -, documentando e até antecipando transformações que estavam por vir. É por isso que seu belo filme segue complexo, e atual, em 2020. Não perdeu nada da capacidade de perturbar. Schlesinger surgiu no bojo do chamado free cinema, gestado no movimento dos angry men do teatro inglês. Fosse pela origem, ou o quê, o grupo da Cahiers du Cinéma não tinha apreço pela rapaziada inglesa.

Schlesinger, com erros e acertos, foi mais interessante no período que vai de Ainda Resta Uma Esperança/A Kind of Loving, de 1962, a Domingo Maldito. Depois, tornou-se ziguezagueante, mas não perdeu a capacidade de surpreender. A tortura na cadeira do dentista de Maratona da Morte, as seitas norte-americanas de Adoradores do Diabo, a professora tirana (Shirley MacLaine) de Madame Souzatska, o inquilino ensandecido (Michael Keaton) de Morando com o Inimigo. Schlesinger foi sempre fascinasdo por atores. Forneceu a Richard Gere um de seus papeis emblemáticos - em Os Ianques Estão Chegando, de 1979. O problema é que, a partir de certo momento, desistiu de ser 'crítico', tornou-se incômodo. Morreu em 2003, aos 77 anos.

Onde assistir:

  • À venda em DVD
Estadão
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