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Clássico do Dia: 'Curva do Destino', um exemplar brilhante de cinema de invenção em Hollywood

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este de Edgar G. Ulmer, que ostenta a reputação de ser o maior de todos os filmes B

18 set 2020 - 08h12
(atualizado em 29/10/2020 às 01h49)
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Nunca houve uma mulher como Gilda, anunciava a máquina de Hollywood em 1946. Glenn Ford faz jogador que se envolve com a mulher do chefe em Buenos Aires. Enquanto canta Put the Blame on Mame, Rita Hayworth tira as luvas de cano longo e é como se estivesse fazendo um strip tease. Sugestões de homossexualidade - a bengala que esconde a lâmina. A penetração como morte. Charles Vidor seguiu direitinho o receituário do filme psicanalítico e fez, senão um clássico, uma obra de culto. Esqueça, por um momento, a fulgurante Rita. Nunca houve uma mulher como Ann Savage em Detour/Curva do Destino, coincidentemente, no mesmo ano de Gilda.

O clássico de Edgar G. Ulmer ostenta a reputação de ser o maior de todos os filmes B. Preto e branco, 69 econômicos minutos. Não é preciso mais do que isso para que Ulmer filme o homem e a mulher que compõem talvez a mais repelente de todas as duplas. Detour inicia-se sob o signo da fatalidade, com o homem lembrando as circunstâncias que mudaram radicalmente sua vida. Um pianista de Nova York viaja para o Oeste, rumo a Los Angeles, onde vive sua amante cantora. No caminho, pega carona com um motorista que morre de uma overdose de comprimidos. De maneira totalmente irracional - instintiva? -, o protagonista, Tom Neal, livra-se do cadáver e assume o carro e a identidade do homem que morreu. Segue em frente e dá carona para uma mulher - Ann.

Qual é a chance de que ela conhecesse o morto? Por menores que fossem, é o que ocorre. Ann torna-se senhora da situação. Chantageia Neal. Quando chegarem a Los Angeles, exige que ele venda o carro e lhe dê o dinheiro. Numa sucessão de erros, Neal chama a amante em Los Angeles e Ann, conhecedora de sua identidade, aumenta o círculo da ameaça. Talvez somente com Joseph Losey, nos anos 1960, o cinema tenha voltado a filmar a condição masculina de forma tão claustrofóbica e aflitiva. Como Stanley Baker em Eva, ou James Fox em O Criado, Neal torna-se escravo de Ann. É uma das grandes predadoras da tela, e Neal um dos grandes perdedores. Ela não tem ilusões - "Se me enforcarem não haverá perda. Terá sido merecido." Ele usa a inevitabilidade do destino como álibi para a própria derrota. Nada do que fizer poderá mudar a escolha trágica que fez ao roubar os pertences - ao roubar a vida - do motorista morto na estrada.

Edgar G. (de George) Ulmer pertence à geração de diretores europeus que migrou para a América fugindo do nazismo. Estudou arquitetura e filosofia em Viena e fez teatro com Max Reinhardt, acompanhando o célebre encenador numa turnê pelos EUA. De volta à Alemanha, ligou-se a F.W. Murnau quando realizava Fausto. Acompánhou-o nos EUA, mas voltou à Alemanha. Vivia nesse vaivem, tendo integrado a equipe de um dos filmes mais influentes da época - Menschen in Sontag. Em meados dos anos 1930, radicou-se de vez em Hollywood, mas, ao contrário de outros grandes europeus, a indústria confinou-o nas produções de baixo orçamento. Criou-se a lenda do realizador maldito. Terror (O Gato Preto, com a dupla Bela Lugosi e Boris Karloff), western (o convulsivo Madrugada da Traição, que Cahiers du Cinéma considerava obra-prima absoluta). Ulmer cavou seu espaço no panteão dos maiores.

Justamente The Naked Dawn. O western de 1955 foi realizado quase dez anos depois de Curva do Destino. Um pistoleiro desestabiliza a vida de um jovem casal de mexicanos, exatamente como Ann Savage entra na vida de Tom Neal para destruí-lo. Contribuiu para aura do filme a tragédia pessoal do ator, que foi preso - na vida, não na ficção -, acusado de matar a mulher. No Guide for the Film Fanatic, Danny Peary compara Ann a um abutre. Diz que ela olha para Neal como se quisesse estripá-lo. E tem a voz. Ann despeja as palavras como quem gargoleja. No limite, morre asfixiada, com as palavras entaladas na garganta, num efeito que permanece como espectador.

De volta a Menschen in Sontag, de 1930, o filme fez história pelo que os historiadores chamam de 'nova objetividade'. Pessoas comuns, atores naturaais, num domingo em Berlim. O filme tornou-se reputado como documento sobre a vida em Weimar antes da ascensão de Adolf Hitler ao poder. Foi também uma espécie de pré-experimento neo-realista, antecipando de mais de uma década o movimento que floresceu na Itália, no pós-guerra. O mais curioso é que, além dos créditos para Robert Siodmak e Ulmer como diretores, a ficha técnica inclui futuros autores de prestígio como Billy Wilder, Fred Zinnemann e Curt Siodmak. Vários desses realistas de primeira hora iriam fazer carreira no cinema de gênero em Hollywood, e até mesmo se tornariam mestres da tendência conhecida como filme noir.

Gênero ou estilo? O noir celebrizou-se pela estética de claro-escuros radicais e pelas histórias de homens enganados por mulheres, de homens e mulheres enganados pelas aparências. Nesse sentido, Ann Savage impõe-se como a definitiva femme fatale. Ulmer nunca se intimidou pela pobreza de meios de que dispunha no filme B. Quanto menos dinheiro tinha, mais investia, para compensar, na riqueza da mise-en-scène. Curva do Destino foi filmado em apenas uma semana. Setenta e tantos anos depois, segue sendo um exemplar brilhante de cinema de invenção em Hollywood. Curiosamente, houve um remake no começo dos anos 1990 - com Tom Neal Jr. no papel que havia sido de seu pai.

Onde assistir:

  • Looke
  • Amazon Prime Video
Estadão
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