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Análise: Trilha sonora de Morricone se integrava à linguagem da obra e dela se tornava inseparável

Gênio da música e do cinema, o artista italiano de 'Por um Punhado de Dólares' morreu aos 91 anos

6 jul 2020 - 10h50
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No filme Desenterrando Sad Hill (Netflix), Ennio Morricone dá longa entrevista contando como compôs a trilha de Três Homens em Conflito (1966). Seu problema era não repetir o que já havia feito nos dois módulos anteriores da trilogia de Sergio Leone - Por um Punhado de Dólares (1964) e Por Uns Dólares a Mais (1965).

Não queria perder o espírito da coisa e nem ser redundante. Sua saída foi compor uma célula musical simples, de quatro notas, que sublinha de forma perfeita a saga dos pistoleiros em busca do tesouro enterrado no cemitério. Reveja essas sequências e tente imaginá-las sem a música. Desaparecem. Perdem sua dinâmica, magia e eficácia. Uma trilha sonora de gênio é assim - ela não se limita a ilustrar as imagens, mas se integra à linguagem da obra e dela se torna inseparável.

É possível que as trilhas sonoras compostas por Morricone para os western spaghetti de Leone estejam entre as mais conhecidas de sua obra. No entanto, tão imenso é seu legado para o cinema, que até essa afirmação é duvidosa. Leone, que morreu ontem aos 91 anos, trabalhou logo a seguir numa obra-prima do cinema político como A Batalha de Argel (1966). Fez a música de Teorema (1968) e Decameron (1971), de Pier Paolo Pasolini, e a de A Classe Operária vai ao Paraíso (1971), de Elio Petri. No mesmo ano (1971), musicou o engajado Sacco e Vanzetti, de Giuliano Montaldo, e, em 1976, o épico revolucionário 1900, de Bernardo Bertolucci.

Sim, voltou a trabalhar com Leone em Era uma Vez na América (1984) e por certo estaria nos créditos de O Cerco de Stalingrado, grande ambição artística de Sergio Leone, caso o diretor não tivesse morrido antes de conseguir realizar o que acreditava seria sua obra-prima.

A música de Morricone podia ser operística como as dos western spaghetti ou emocionante, como a de Cinema Paradiso (1989), de Giuseppe Tornatore. Ou ideal para sublinhar intrincadas cenas de ação como as de Os Intocáveis (1987), de Brian de Palma, ou as de Busca Frenética (1987), de Roman Polanski. Ou cômica e irônica com em A Gaiola das Loucas (1978).

Esse talento incrível e versátil trouxe até o presente uma carreira iniciada lá em 1960, com O Fascista, de Luciano Salce, e fez com que Quentin Tarantino o escalasse para musicar Os Oito Odiados (2015), trabalho pelo qual faturou um Oscar. São mais de 500 músicas, compostas para filmes, TV e séries. Pelo volume, uma obra difícil de enumerar. Mas muito fácil de reconhecer, pois Morricone, assim como os dois outros grandes maestros italianos - Nino Rota e Nicola Piovani -, é dono de um estilo muito particular. Uma assinatura, por assim dizer. E com firma reconhecida.

Ennio Morricone tinha perfeita consciência da qualidade do seu trabalho. Tanto assim que, enquanto pôde, apresentou sua obra em concertos públicos. Ele mesmo regia a orquestra. Justificava-se: "No cinema, as pessoas não prestam tanta atenção à música. Estão ocupadas com a ação, com a história, com os atores e os diálogos. Já nos concertos, podem ouvir a minha música, e apenas ela".

É verdade. Os concertos de Morricone eram antológicos, como um que este crítico teve oportunidade de assistir, em 2011, na Praça San Marcos, em Veneza. Acontece que suas músicas estavam tão ligadas ao cinema que, ao ouvi-las, era impossível não lembrar das cenas que elas compunham na tela grande. Na emoção, música e imagem se fundem.

Estadão
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