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Agnès Varda, a genial catadora de imagens

Diretora podia ter alma de documentarista, mas sua filmografia inclui longas de ficção hoje tidos como clássicos, como 'Cléo das 5 às 7' e 'Os Renegados'

29 mar 2019 - 12h55
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E foi-se embora a "catadora", coletar imagens no céu, lamentam os cinéfilos nas redes sociais do mundo todo. A referência é ao filme Os Catadores e Eu (Les Glaneurs et la Glaneuse), talvez a obra-prima de Agnès Varda, que morreu aos 90 anos. Nele, Varda se define como uma simples recolhedora de imagens, que reúne o material rejeitado, o perdido, o desprezado e o transforma em algo útil. Ou, no melhor dos casos, em obra de arte como acontece nesse documentário que registra o revés da sociedade de consumo em périplo pela França.

Varda, nascida na Bélgica e radicada na França, é tida como uma das pioneiras da nouvelle vague, mas na verdade pode ser considerada sua iniciadora. Começou antes da eclosão do movimento cinematográfico francês de Godard, Truffaut & Cia, com La Pointe Courte (1955) filme, que, visto em retrospecto, apontou um caminho e deu vida nova a um cinema francês então muito tradicionalista do ponto de vista formal e de viés literário (no mau sentido do termo).

Varda podia ter alma de documentarista, mas sua filmografia inclui longas de ficção hoje tidos como clássicos, como Cléo das 5 às 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965) e Os Renegados (1985). São filmes lindos, amorosos, humanos, com vista na contradição própria do ser e não sua idealização. Pode falar de uma jovem cantora (Corinne Marchand) que, angustiada, aguarda o diagnóstico médico que vai dizer se ela vai morrer ou não, como em Cléo. Ou da outsider que sai com sua mochila pela França porque não consegue se enraizar em nenhum lugar, como em Os Renegados, trabalho maravilhoso de Sandrine Bonnaire.

Esses filmes a fazem uma figura incontornável da nouvelle vague, uma de suas raras realizadoras e artista politizada desde o início. Aliás, historiadores a incluem no grupo da "rive gauche" — junto com Chris Marker e Alain Resnais — para marcar a diferença, sociológica e política, em relação à nouvelle vague de Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer.

Do seu casamento feliz com o cineasta Jacques Demy, Varda tirou seu Jacquot de Nantes, uma homenagem tocante ao marido morto precocemente. Fez ainda dois filmes em memória de Demy: Les Demoiselles ont eu 25 ans e L'Univers de Jacques Demy. Engajada, fez filmes sobre a Guerra do Vietnã (um dos episódios de Loin du Vietnan) e as lutas dos negros norte-americanos pelos direitos civis, em sua faceta mais radical, com Panteras Negras.

Varda tinha um sentido poético da imagem e o usou ao rodar o relato autobiográfico do seu percurso em As Praias de Agnès (2008). Visages Villages, realizado com o fotógrafo JR, percorre as pequenas cidades francesas e intervém no ambiente com fotos gigantes de suas paisagens e seus habitantes. Como todo grande artista, Varda sabia que não existem "pessoas comuns". Vistas de perto, essa pessoas anônimas mostram toda a riqueza e complexidade de suas personalidades. Era o que sua câmera humanista conseguia registrar.

A grande artista ainda nos deixou ainda um último legado autobiográfico, o documentário Varda por Agnès, que estreou no Festival de Berlim deste ano.

Agnès Varda era um caso único e irrepetível de cineasta com olhar humanista e domínio formal muito preciso e particular. Só não podemos dizer que com ela morre um modo singular de ver o mundo, porque ela nos deixa um substancioso legado de imagens. Basta saber vê-las.

Estadão
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