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Opinião: Filme dublado ou legendado?

Duas maneiras diferentes de ver cinema.

15 nov 2018 - 10h32
(atualizado às 10h56)
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Palmeiras ou Corinthians, Flamengo ou Fluminense, praia ou campo, Beatles ou Rolling Stones. O cinema também tem (pelo menos) uma oposição de peso: filme dublado ou legendado?  Os dois campos têm árduos defensores. Alguns ficam chocados quando chegam aos cinemas e encontram apenas a versão dublada do seu filme preferido. Outros passam longe da versão original e se divertem mesmo com as vozes brasileiras. Enquanto alguns espectadores temem a invasão dos filmes dublados, outros criticam a obrigação dos filmes legendados por parte dos cinéfilos mais puristas. O AdoroCinema não é nem louco de defender um lado e atacar o outro. É mais interessante entender o lado de cada um, e buscar os argumentos mais fortes em defesa de cada posição. A experiência no cinema realmente muda se o filme for legendado ou dublado? Abaixo, a gente lista algumas ideias desse debate. Como você prefere ver filmes? Wellington Muniz dublando PéPequeno. 1. A versão legendada preserva a visão original dos criadores Este é um dos principais argumentos em defesa da legendagem. Uma parte importante do trabalho dos atores passa pela voz, e quando você escuta com a voz de outra pessoa, o personagem pode mudar bastante. Uma dublagem pode piorar ou melhorar a atuação original, mas de qualquer modo, não será aquele produto final que o diretor, os produtores, montadores e toda a equipe imaginaram. Alguns fãs sugerem que a dublagem não modifica muito o resultado no caso das animações, porque não existem atores de carne e osso na imagem. Mas eles se esquecem de que, nas animações, as vozes são gravadas antes de a animação ser feita, e normalmente os personagens animados se adequam àquela voz, à maneira de mexer a boca, e até incorporam características dos atores responsáveis pelas vozes originais. Mas se você não se importa em ver exatamente o mesmo filme que os americanos estão vendo (no caso de filmes americanos, é claro) e se diverte em igual medida com a versão nacional, então vale abraçar a dublagem sem medo. 2. A versão dublada é mais democrática Esta constitui a principal ideia para sustentar a importância da dublagem. As versões nacionais permitem que o filme chegue às pessoas que não sabem ler, que não leem com a velocidade adequada para acompanhar o ritmo das legendas, ou que possuam leves restrições visuais. Muitos países europeus conseguem sustentar o seu circuito exibidor graças à dublagem dos filmes, como é o caso da Espanha e da Alemanha. Neste último país, a ascensão das produções dubladas deu-se por motivos políticos: após o fim da Segunda Guerra Mundial, os filmes dos Aliados — Estados Unidos, Reino Unido e França — foram novamente permitidos nas salas de cinema alemãs; como tais nações tinham o objetivo de "reeducar" as massas germânicas através dos ideais propagados pela sétima arte, muitas das produções da época foram traduzidas de modo a atingir cada vez mais espectadores. De lá para cá, a Alemanha tornou-se uma das líderes do âmbito da dublagem, ao lado da Itália e da supracitada Espanha. Rocky II em alemão. No caso da nação ibérica, o estabelecimento dos títulos dublados deu-se, como em muitos outros países, durante a época da chegada das películas sonoras. Como forma de reafirmar a identidade nacional — projeto de grande parte dos regimes europeus dos anos 1930, incluindo a Espanha do ditador Francisco Franco —, a dublagem tornou-se uma ferramenta importante para os ideais nacionalistas. Atualmente, os vizinhos dos portugueses seguem na ponta deste mercado específico, empregando dubladores em filmes e séries em geral. A França ainda resiste à dublagem massiva — apesar da força do ideal de cinema de arte e das versões originais no país de Emmanuel Macron, apenas 20% das sessões dos filmes não-falados em francês eram legendadas —, mas é cada vez mais comum que os países utilizem as versões nacionalizadas para chegar com facilidade às cidades pequenas e aos grupos sociais que veem na legenda um impedimento à experiência do cinema. 3. A versão legendada permite o acesso a outra cultura Muitas pessoas estudando inglês - ou francês, espanhol etc. - utilizam o cinema como forma de ouvir a língua, escutar palavras diferentes, a pronúncia, o ritmo. Mas o cinema não serve apenas para o aprendizado de línguas: ele permite descobrir outras cidades, outros costumes, outras referências culturais. Se você escuta, durante uma animação dublada, que os personagens querem ir ao "programa do Faustão", enquanto dizem "Caraca!", pode ter certeza de que os americanos não escutaram nada disso. Talvez ouvir falar no David Letterman Show, ou escutar alguém gritar "Damn it!" não seja tão divertido, mas permite compreender como outras pessoas se expressam. E nada impede que, logo após a sessão, o espectador busque na Internet as referências que escutou, mas não entendeu. Isso também faz parte do acesso cultural do filme. Homem-Formiga e a Vespa: Versão dublada tem Michael Douglas dizendo "nunca mais eu vou dormir" Para além do caso de Homem-Formiga e a Vespa, cuja versão brasileira colocou o refrão da música "Michael Douglas" na boca de Hank Pym, personagem do veterano e premiado ator no Universo Cinematográfico Marvel, outro exemplo de obra que ficou famosa no Brasil por sua dublagem é a clássica Chaves. Para os mexicanos, o melhor destino praiano só pode ser mesmo Acapulco, cidade portuária norte-americana conhecida por atrair milhões de turistas. No entanto, a ideia de viajar à praia mexicana na década de 1970 para um brasileiro, que tem faixas de areia e mar muito mais próximas de si ao redor do país, não era exatamente plausível. Por isso, no celebrado episódio da ida à Acapulco, uma das três partes do capítulo, dublada por um estúdio diferente, substituiu a praia mexicana pela praia do Guarujá, localizada no litoral paulistano, como uma forma de tentar aproximar o seriado da realidade brasileira. Cena do episódio em Acapulco/Guarujá. A animação O Grinch, por sua vez, recentemente lançada nas salas de cinema nacionais, faz referência a um meme ainda mais contemporâneo: "Teile e zaga", a "dança narrada" de Alcione Alves que viralizou e ganhou a internet com sua irreverência. E é claro que, na versão original, o esverdeado personagem dublado por Benedict Cumberbatch não é um conhecedor da famosa "quicada literal" ou da "modelo abusada". 4. A versão dublada dialoga com a nostalgia e a infância Para a grande maioria dos espectadores, o contato com o cinema começa ainda criança, antes mesmo se sabermos ler - ou pelo menos, de conseguirmos ler na velocidade exigida pelas legendas. A dublagem sempre foi associada ao cinema infantil, porque assim também são os desenhos na televisão e outras formas de audiovisual - afinal, a compreensão da fala vem muito antes da prática da escrita. Por isso, cada um deve se lembrar das primeiras animações da Disney que viram, dos clássicos da Sessão da Tarde com vozes brasileiras, e devem cantar as canções clássicas dos filmes infantis em português - mesmo muito tempo depois, quando adultos. "Onde eu nasci / Onde eu cresci / É mais molhado / Eu sou vidrado por tudo aqui...". via GIPHY A dublagem, portanto, está ligada a um bom período da infância, seja de aprendizado ou escapismo e, para muitas pessoas, ainda carrega uma sensação de proximidade na fala, na língua e nas referências, que se torna essencial no cinema. A Disney, por exemplo, é uma das principais distribuidoras de filmes infantis a nível global e, no Brasil, oferece cópias dubladas de todos os seus títulos para os exibidores locais. 5. A versão legendada facilita a distribuição e exibição Na hora de adaptar um filme estrangeiro ao público nacional, não há dúvida de que a legendagem constitui um processo muito mais rápido e barato de se fazer. Uma única pessoa é capaz de cuidar de toda a legenda, que será em seguida revisada e incorporada à cópia nacional, mas é preciso de uma equipe muito maior para efetuar a dublagem com todas as vozes diferentes, gravadas em estúdio, com um diretor de dublagem... Grandes festivais brasileiros como a Mostra de São Paulo e o Festival do Rio chegam a exibir mais de 300 filmes aos espectadores - todos legendados, exceto pelas produções brasileiras, é claro. Se fosse necessário dublar todos estes filmes, os festivais se tornariam inviáveis neste formato. Além disso, com um público adulto acostumado às cópias legendadas, especialmente nos filmes em live action, a versão legendada se torna essencial para que pequenos filmes, sem a mesma verba dos blockbusters, também sejam vistos por aqui. Cena do filme francês O Amante Duplo. Distribuidoras independentes e não associadas às majors nacionais como a Califórnia Filmes e a Imagem Filmes, por exemplo, trabalham com dublagens quase que exclusivamente no caso das animações infantis. Quando se trata de live actions, a adaptação para o público brasileiro é mais rara. 6. A versão dublada contribui à indústria nacional Por outro lado, embora a dublagem seja mais cara, ela contribui a fomentar a indústria brasileira, empregando cada vez mais profissionais na nacionalização dos filmes estrangeiros. Muitos atores e dubladores profissionais encontram novas oportunidades através de plataformas como a Netflix, que disponibilizam todo o seu conteúdo em versão original e dublada. A dublagem tem sido inclusive utilizada por muitos distribuidores como argumento de marketing, sugerindo ao público ver uma animação porque possui a voz da Larissa Manoela ou Maísa Silva, por exemplo. Ao mesmo tempo, o ramo da dublagem nacional possui seu próprio star system, com grandes dubladores sendo reconhecidos e apreciados pelo público, como é o caso de Wendel Bezerra e do falecido Waldyr Sant'Anna. "Vemos, cada vez mais, muitos fãs apaixonados por dublagem", aponta Lhays Macedo, apresentadora do AdoroCinema e dubladora de filmes como Sierra Burgess é uma Loser e Cinderela. "Nosso trabalho é não só uma ferramenta de inclusão, como também uma arte capaz de aproximar e tocar as pessoas. Graças às redes sociais, muita gente hoje em dia nos conhece e nos procura para demonstrar carinho e admiração. Eu, como dubladora e como fã de dublagem, me sinto extremamente feliz de ver este movimento em prol de uma dublagem de qualidade". "Aumentaram o número de estúdios, o número de dubladores e eu acho que essa é uma tendência até mundial", ponderou Wendel Bezerra, em entrevista ao AdoroCinema durante o Anime Friends 2018, sobre o recente boom da dublagem. De acordo com o popular dublador de personagens icônicos como Goku e Bob Esponja, seguido por mais de um milhão de pessoas no YouTube, as novas plataformas, como o universo dos games e o streaming, têm contribuído para o desenvolvimento e a expansão da indústria da dublagem ao redor do mundo. 7. As duas versões podem conviver O fato é que uma versão não precisa excluir a outra - um mesmo filme pode ter as cópias legendadas e dubladas à disposição para o público escolher. Idealmente, isso estaria disponível em todos os cinemas, mas num país com poucas salas - em 2017, o Brasil possuía apenas 3.160 cinemas, contra as mais de 6.000 salas de cinema do México, que é bem menor que o nosso país, e as mais de 40.000 telas nos Estados Unidos - é compreensível que essa distribuição igualitária não ocorra de fato. O mais comum é ver uma distribuição polarizada: mais versões legendadas em grandes centros urbanos, mais versões dubladas em periferias e zonas rurais. Para compreender como a divisão é bastante fragmentada entre os dois lados, basta conferir como a distribuição se dá na prática: Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, que acaba de entrar em cartaz, tem um maior número de sessões adaptadas para o público nacional nas zonas norte e oeste do Rio de Janeiro, as áreas menos abastadas da cidade. Em compensação, quase todas as sessões legendadas estão alocadas na badalada zona sul. Em São Paulo a situação não é diferente. Na periferia da capital, no distrito de Itaquera, na zona leste, só serão disponibilizadas sessões dubladas de Os Crimes de Grindelwald. Já no bairro de Vila Olímpia, localizado em uma das regiões mais ricas do município, 2/3 das exibições do spin-off de Harry Potter são legendadas. Mas sempre é possível fazer pressão no distribuidor e exibidor local para conseguir a cópia que você prefere mais perto da sua casa. Se os cinemas perceberem um interesse real por outra versão, podem decidir investir numa segunda cópia para o cinema. 8. A experiência muda, é claro Por fim, não adianta dizer que "é a mesma coisa ver um filme dublado ou legendado". A experiência muda bastante, e o filme não é o mesmo de acordo com a versão escolhida. Mas o filme também não será o mesmo se for visto na tela grande do cinema ou na tela do celular, numa sala equipada com som Dolby Surround ou com as caixinhas da som do computador, se for visto de uma só vez, como no cinema, ou parando para ir ao banheiro, atender ao telefone e olhar o celular, como em casa. Ou seja, por mais que a cópia original do filme seja a mesma, cada espectador assiste ao filme de uma maneira diferente, e tem uma impressão distinta do que está vendo, de acordo com seus gostos e sua bagagem cultural. O mais importante é que as pessoas tenham acesso ao cinema, da melhor forma possível, e da forma que mais gostem - ou que possam adquirir.

Foto: AdoroCinema / AdoroCinema
AdoroCinema
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