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CineOP 2018: Dawson City - Tempo Congelado é um tesouro em forma de filme

Longa do cineasta Bill Morrison é um dos principais trabalhos a integrar a mostra de cinema de Ouro Preto deste ano.

17 jun 2018 - 08h04
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Enterrados no chão, soterrados pelo tempo e esquecidos pelo curso da História, 533 rolos de filme. 372 obras, mais precisamente, espalhadas e abandonadas entre grades de ferro, garrafas quebradas e outros descartes do passado. Sim, esta é uma trama incrível, exatamente como decreta a primeira cartela de Dawson City - Tempo Congelado, uma das peças centrais da programação do CineOP 2018 e ousado documentário do cineasta Bill Morrison, que funciona tanto como um tratado de amor à fisicalidade do cinema, quanto como retrato subida dos Estados Unidos ao posto de nação mais poderosa do mundo.

Foto: AdoroCinema / AdoroCinema

Para concatenar estas duas aparentemente desconexas veias narrativas, Morrison empreende uma estrutura dialética que, no fim das contas, prova ser o grande trunfo desta produção. Fazendo valer sua experiência como pesquisador e cinearquivista, o realizador se apropria dos materiais encontrados nos inúmeros filmes que hoje formam a coleção de Dawson e pinça cenas para ilustrar a agridoce e trágica história de ascensão e ocaso do vilarejo-título, uma sociedade inóspita que foi forçada a nascer, apesar de tudo: aqui, Morrison reconstrói o solo onde as películas foram enterradas - grão por grão e frame por frame.

Este é um trabalho de paciência. Majoritariamente mudo e muito dependente da boa, ainda que ocasionalmente repetitiva, trilha sonora de Alex Somers, Dawson City - Tempo Congelado propõe um diálogo lento ao espectador acerca da preservação da memória e, por isso mesmo, perde o compasso em determinadas alturas - especialmente quando Morrison decide se afastar da espinha dorsal narrativa para embarcar em digressões e desvios rumo às pequenas histórias de alguns dos cidadãos de Dawson.

Não que estas anedotas sejam necessariamente ruins; o ponto, de fato, é que elas soam mais cansativas do que pertinentes à trama central. Há, portanto, uma certa hiperatividade no câmbio de temas e searas narrativas que Morrison nem sempre costura com habilidade. A longa duração e a quantidade de pontos focais na pauta do cineasta, por sua vez, também não ajudam a aplacar a impressão de que Dawson City - Tempo Congelado nem sempre se derrama para os lados certos. Fosse mais enxuto, seria irretocável.

De qualquer forma, por outro lado, é impossível negar a beleza da empreitada geral por si só e é igualmente inviável não se sentir tocado pela exploração afetiva de Morrison quanto à película cinematográfica e ao suporte analógico da sétima arte. Hoje, em um tempos em que se estima que 75% da produção do cinema mudo se perdeu durante a História do Cinema, ver este Tempo Congelado é se deparar com um testemunho nostálgico de uma época não vivida. E é justamente quando o cineasta foca na fisicalidade do cinema - uma arte potente e transformadora que durante seu primeiro meio século de vida foi impressa no mais volátil e combustível dos materiais - que o longa atinge grandes alturas.

A partir da técnica - Morrison encontra tempo para explorar a transição da película de nitrato de prata, altamente inflamável e causadora de inúmeros incêndios no século XX, para a película de acetato, também conhecida como safety stock -, o diretor encontra o aspecto humano. Dawson City - Tempo Congelado, portanto, funciona muito melhor como o resgate da memória de um povo - de um fragmento de civilização e de sua relação única e intrínseca com a sétima arte - do que como uma simples denúncia das "ligações perigosas" entre o cinema e o capitalismo. Não há equívoco, enfim, que dilua a potência deste ato de recordação - e como Eduardo Galeano bem escreveu, recordar é "voltar a passar pelo coração".

Degradação da película se torna efeito estético na obra de Morrison.

Defensor da beleza da decomposição da película - os filmes da coleção de Dawson carregam marcas de seu contato com a água que se tornaram inscrições belíssimas no corpo das obras, todas pré-Hollywoodianas -, Morrison faz refletir e e encanta, com direito a história e amor e tudo para fechar a conta. Muito como a corrida do ouro que ocorreu na cidade, este filme pode ser exaustivo no meio do caminho. Mas aguente: a recompensa final vale todo e qualquer "sacrifício". Debaixo dos destroços e do passado, os afetivos últimos 20 minutos de Dawson City - Tempo Congelado são um tesouro em forma de filme.

AdoroCinema
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