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Chico bem que avisou...

Chico Buarque, isolado desde fins de março em Petrópolis, chega aos 76 anos no meio de uma crise que atinge todo o país

20 jun 2020 - 15h47
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Ontem foi o aniversário de Chico Buarque. Isolado desde fins de março em Petrópolis, na região serrana vizinha ao Rio, e sem ter a perspectiva de quando poderá voltar para casa, ele chega aos 76 anos no meio de uma crise que encobre todo o país, causada pela pandemia que provoca uma devastação sem um final à vista.

Há, porém, outra crise que, esta sim, de certa maneira Chico soube antecipar: a provocada pelo aparecimento ruidoso de uma parcela da população (minoritária, por certo, mas nem por isso menos explosiva e ameaçadora) radicalizada, uma extrema-direita como há muito não se via, insuflada pelo quadro político do autoritarismo saído das urnas, um fenômeno sem precedentes na história da República.

Lembro que em novembro do ano passado eu estava em Buenos Aires, quando apareceu Essa Gente, seu mais recente livro. E recordo ter lido, nos jornais brasileiros, o trecho que sua editora adiantou para divulgação.

Era aquele que retratava um escritor passando por severo aperto financeiro, sem conseguir escrever e implorando novos adiantamentos a seu editor. Brinquei com ele, dizendo que nunca tinha pensado que um dia seria inspiração para um personagem de seu livro.

Na volta ao Rio li Essa Gente. E o impacto foi tremendo.

Mesclando humor, às vezes amargo humor, como forma de encarar a realidade, e uma espécie de estupefação pelo que via à sua volta, o personagem mostrava um país literalmente quebrado ao meio, uma cidade, o Rio, esvaindo-se em sangue. E enquanto a escrita segue deslizando com uma espécie de suavidade, áspera suavidade, o que ela mostra é um panorama tenebroso, violento, encobrindo o país, expondo o mergulho num beco que se tiver alguma saída ninguém vê.

O cenário é o Rio de Janeiro, em especial o Leblon. Acontece que tal cenário é pura fachada: o que o livro retrata, em detalhes assombrosos, é um Brasil que caminhava veloz para se derreter. De vez? Não se sabe.

Chico foi, desde sempre, um olhar atento sobre o Brasil. Uma espécie de cronista das agruras e desesperanças, das esperas e expectativas do país.

Não me lembro, porém, de uma visão assim tão antecipadora de uma realidade que já estava, é verdade, fraturada, mas ainda deixando espaço para respirar. Não por acaso, o diário do personagem, Manuel Duarte, começa em dezembro de 2016 e vai até setembro do ano passado.

Dia desses, pensando no que vivemos, reli longos trechos de Essa Gente. Não preciso mencionar a alta qualidade da carpintaria literária de Chico.

O mais assombroso do livro, então, é ter sido escrito como um aviso agoniado de um fenômeno tenebroso que estava se insinuando no horizonte.

As tensões e truculências que pretendiam - e ainda pretendem - rachar o país, se não ao meio, pelo menos de maneira severa, já haviam se instalado no ar. O próprio Chico foi alvo e vítima dessa fúria desembestada que até 2015 tinha permanecido abrigada em algum armário.

O que não se podia prever, ou pouquíssima gente previu, foi o que viria depois até chegar ao que se vê hoje país afora: marés de fúria, de truculência, de desequilíbrio em todos os sentidos. Uma onda nefasta devastando tudo, do meio-ambiente às artes e à cultura, da educação à imagem do país no resto do mundo, escancarando mais e mais as brutais diferenças sociais, espalhando, incitando, violência. Lembro que, na época do lançamento, falou-se que Essa Gente continha uma espécie de sátira das classes dominantes neste país agora dominado pelo caos.

Hoje sabemos que não, não era sátira: era advertência, um aviso dolorido, feito num tom de ácida amargura.

O país já estava cindido profundamente. Ameaçava afundar de maneira melancólica. A ameaça virou o que vemos aí, golpeando nosso futuro de maneira bestial.

Nada pode ser mais agoniante que saber que o dia de hoje foi pior que o de ontem, e melhor que o de amanhã.

Pois Chico soube antever essa agonia. Bem que tentou avisar.

Estadão
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