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Como agricultores que fugiram dos vikings criaram a culinária tradicional da Islândia

População aprendeu a comer peixe podre para sobreviver à escassez de alimentos e a condições extremas de temperatura.

12 ago 2018 - 12h19
(atualizado às 13h43)
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A neve se acumulava ao redor do pequeno restaurante, localizado a alguns metros do mar ártico. Para minha sorte, o estabelecimento - decorado com redes de pesca, cascos de caranguejo e gnomos - estava quente.

No prato à minha frente, havia uma salsicha de fígado curada em soro de leite azedo, um pedaço de cordeiro defumado sobre esterco e lascas de arraia podre, que exalavam um forte cheiro de urina e pareciam mais uma obra do artista plástico H.R. Giger (criador do Alien).

A salsicha estava devidamente azeda, nada demais. Já o sabor do cordeiro se beneficiava do fato de que esse tipo de animal aparentemente não faz a digestão muito bem, o que significa que o prato poderia ter sido facilmente chamado de cordeiro defumado sobre grama.

Mas quando estava prestes a experimentar a arraia podre, alguém no fundo do restaurante gritou na minha direção:

"Skata! Ha!"

Skata, ou arraia podre, é um prato tradicional na Islândia | Foto: Bert Archer
Skata, ou arraia podre, é um prato tradicional na Islândia | Foto: Bert Archer
Foto: BBC News Brasil

Era Gísli, um jovem islandês de 20 e poucos anos. Ele tinha sido meu guia no dia anterior nesta pequena cidade, chamada Akureyri, ao norte da Islândia. Passamos uma noite agradável "caçando" aurora boreal de carro e ouvindo música islandesa - uma combinação suave e etérea de glockenspiels (jogo de sinos), pandeiros, guitarras tocadas com arco e muitos falsetes.

"Está bom? Você gostou?", ele perguntou. Eu disse que ainda não tinha provado. E ele disparou: "Você vai amar. É horrível!"

Finalmente, eu experimentei. A arraia estava quente, tinha acabado de sair do forno, mas a queimação que senti na língua era química, resultado de alguma reação forte que estava acontecendo naquele peixe em decomposição. Eu devo ter feito uma careta.

"Ha!"

Gísli apareceu novamente com o casal de turistas chineses que estava acompanhando - ele não tinha tirado o olho de mim, estava aguardando minha reação.

"Terrível, né? Ah, eu amo isso! Eles me ofereceram uma porção e assim que terminar, vou pedir mais. É um ótimo alimento viking! É forte! Ha!"

Comi o restante do peixe e resolvi provar, na sequência, uma pequena cabeça de cordeiro. Era apenas meu segundo dia de viagem e minha terceira refeição. Mas, desde o almoço no dia anterior, fiquei com a impressão de que os islandeses têm uma relação diferente com a comida. Eu tinha ido a um lugar chamado Kaffi Kú ("Café Vaca", em tradução livre), onde comi uma tigela de guisado de carne, sentado em um salão envidraçado com vista para um estábulo e, consequentemente, para as vacas (antes de virarem ensopado no meu prato).

Entendo que aproximar as pessoas da sua fonte de comida é um princípio admirável, mas o peixe podre me pareceu demais. E enquanto eu seguia em direção à capital, Reykjavik, consumindo cada vez mais alimentos podres, azedos e defumados sobre esterco, me ocorreu que a culinária islandesa não era apenas estranha, mas possivelmente única.

Sabemos que é comum comer as partes mais baratas - e às vezes não tão apetitosas visualmente - de plantas e animais. E, em todas as cozinhas do mundo em que experimentei iguarias diferentes, havia sempre um sentimento de orgulho nacional em relação ao sabor da comida - seja um estômago de bezerro (shkembe búlgaro), um cérebro de ovelha (mokh mchermel marroquino) ou um rabo de vaca (ensopado jamaicano).

Mas os islandeses, como Gísli, ao que parece, adoram o quão ruins são seus pratos típicos.

As pessoas costumam achar que os vikings são para os islandeses mais ou menos o que os romanos são para os italianos. E que os vikings eram notoriamente fortes, riam diante das dificuldades, eram capazes de resistir ao sofrimento extremo e despertar o medo no coração dos inimigos.

Porém, uma coisa é certa: os islandeses não são vikings. E nunca foram. Eles são, em sua maioria, descendentes de agricultores noruegueses que fugiram dos vikings para conseguir continuar a plantar e criar seus animais em paz. É o que conta a exposição permanente do Museu da Cidade de Reykjavik, na capital do país.

"Essa é uma das grandes novidades", afirma Jesse Byock, autor do livro Viking Age Iceland ("Era Viking na Islândia", em tradução livre) e professor de história islandesa e literatura nórdica na Universidade da Califórnia (UCLA), nos Estados Unidos, e na Universidade da Islândia.

"Os islandeses nunca se conectaram ao mundo viking, eles sempre foram islandeses. Mas os mais jovens estão muito entusiasmados com a história dos vikings, e agora estão tentando mostrar que podem comer essas coisas também", explica.

Os islandeses sempre comeram esse tipo de alimento. Os famosos cubos de tubarão podre (hákarl), por exemplo, podem ser encontrados em todas as esquinas de Reykjavik. Mas como o turismo ultrapassou a agricultura e a pesca como fonte de renda no país, as novas gerações abraçaram o conceito viking, que funciona muito bem com os visitantes.

Segundo Byock, a verdadeira história por trás da comida - e da relação dos islandeses modernos com ela - é muito mais interessante do que as lendas bárbaras.

Quando os primeiros escandinavos desembarcaram na costa da Islândia, por volta de 871, encontraram uma terra densamente arborizada que parecia pronta para ser cultivada.

Porém, por volta do ano 1000, eles perceberam que todas aquelas florestas de bétulas que estavam derrubando para construir e aquecer suas casas não cresceriam novamente - especialmente porque suas ovelhas também pastavam na região, comendo folhas e sementes.

Sem as árvores, a camada superficial do solo começou a entrar em erosão, tornando difícil, e muitas vezes impossível, cultivar ou utilizar a terra para o pasto.

Como estava longe do continente europeu para importar alimentos, a sociedade islandesa evoluiu para um estado de fome quase constante, tendo que se contentar com o que encontrasse pela frente para comer - e a usar esterco na ausência de madeira para se aquecer e cozinhar.

"Agora digamos que haja uma tempestade em meio a esse cenário", diz Byock.

"Uma baleia morre, explode devido aos gases que carrega, flutua até a costa e você se depara com toneladas e toneladas de carne. O que você faz? Bom, primeiro, vocês se matam para ver quem vai ficar com a carne; depois você separa alguns barris de soro de leite e joga os pedaços de baleia dentro", acrescenta.

Os ancestrais dos islandeses eram fortes, mas não eram vikings. Eles eram agricultores famintos que lutavam de todas as maneiras para sobreviver.

Embora os islandeses não comam mais baleias encalhadas (hvalreki), esse conceito de alimentação deu origem ao hákarl, uma versão mais leve da arraia que eu comi em Akureyri.

A carne do tubarão da Groenlândia, por exemplo, é tóxica para o consumo humano. A alta concentração de ureia pode ter efeitos nocivos na pele, nos olhos e no sistema respiratório. Mas quando a carne é deixada apodrecendo por um tempo - seja em um buraco na areia ou em recipientes plásticos (como é feito hoje em dia) - se torna uma valiosa fonte de proteína.

As arraias e outras espécies de tubarões também são tóxicas, mas igualmente comestíveis quando fermentadas ou apodrecidas. E, como já estão podres, ficam muito bem conservadas.

Assim, durante séculos, essa comida de sabor desagradável foi a diferença entre a vida e a morte na região. A capacidade dos islandeses de lidar com esse gosto horrível foi vital para a existência e eventual sucesso do país, assim como a habilidade dos vikings para lutar e enfrentar obstáculos relacionados às expedições, principalmente na parte continental da Escandinávia.

Com uma média de dois milhões de turistas por ano, o país viu sua alimentação mudar nas últimas três décadas. Hambúrgueres, pizzas e outras massas passaram a ganhar mais espaço nos cardápios locais.

No entanto, a Islândia ainda é uma nação pequena - tem aproximadamente 330 mil habitantes - e suas tradições não são apenas atrações turísticas: simbolizam a forma como os islandeses se conectam entre si e com o passado escandinavo.

No Natal e no Þorri - mês do antigo calendário islandês que coincide com o fim de janeiro e início de fevereiro - são servidos tradicionalmente banquetes com as iguarias típicas. Além de peixe podre, o menu inclui testículo de carneiro (súrsaðir hrútspungar), cabeça de ovelha cozida (svið), carne de cordeiro defumada (hangikjöt), barbatana de foca (seishreifar) e gordura de baleia curada em leite azedo (súr hvalur).

Você pode encontrar fontes termais, como a famosa Lagoa Azul, ou belezas naturais, como as paisagens de gelo que cobrem o interior da ilha, em vários lugares. Mas desconheço qualquer outro país cuja história, evolução e sobrevivência estejam tão intimamente ligadas e representadas em sua comida.

E, para ser honesto, a cabeça de cordeiro é muito boa.

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