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Autora de 'Monólogos da Vagina' fala sobre abusos pelo pai: 'Uma noite fingi que estava morta, e aí acabou'

Famosa desde os anos 1990 por sua peça, Eve Ensler lança livro em que pede desculpas em nome do pai por abusos e estupros cometidos contra ela.

12 jun 2019 - 12h13
(atualizado às 12h17)
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Eve Ensler hoje é ativista pelos direitos da mulher
Eve Ensler hoje é ativista pelos direitos da mulher
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A escritora americana Eve Ensler ficou famosa nos anos 1990 com a peça Os Monólogos da Vagina, uma celebração do corpo feminino que foi reencenada em mais de 140 países e explora histórias de mulheres através de suas experiências sexuais.

Em seu último livro, The Apology ("O Pedido de Desculpa", em tradução livre), publicado em maio nos EUA e sem edição prevista no Brasil, ela revela que sofreu abusos sexuais, praticados por seu pai, Arthur Ensler.

Arthur morreu há anos e nunca pediu desculpas à filha pela série de abusos - físicos, financeiros, sexuais, emocionais - que praticou contra ela desde que Eve tinha 5 anos. Por isso, ela mesma decidiu fazê-lo: o livro é escrito na forma de uma carta fictícia em que o pai pede desculpas por tudo o que fez.

A escritora e dramaturga conversou com o programa Outlook, da BBC, sobre o impacto que o abuso teve em sua vida.

Leia trechos da entrevista abaixo.

BBC - Como você era antes do abuso acontecer?

Eve Ensler - Tenho algumas memórias, me lembro de ser feliz e adorar o meu pai.

BBC - E como foi depois?

Eve Ensler - O amor que eu sentia por meu pai se corrompeu. Ainda que no começo eu não soubesse o que estava passando, sabia que havia algo errado. Meu corpo estava sendo submetido a coisas que eu não havia escolhido, quem decidia era meu pai, a pessoa que eu amava mais que tudo no mundo. Então eu me sentia ao mesmo tempo bem, terrível, mal, sentia todas essas coisas horrivelmente complicadas.

Eve Ensler revelou que sofria abuso sexual de seu pai
Eve Ensler revelou que sofria abuso sexual de seu pai
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Com o tempo comecei a me dar conta de que era algo que eu não queria. Era invasivo, asqueroso. Então comecei a ver como a estranha adoração, a obsessão de meu pai por mim começou a eclipsar todo o resto na família.

A situação começou a mudar quando chegou uma noite em que me afastei dele. Fingi que estava morta. Essa noite acabou o abuso sexual. Eu tinha dez anos.

BBC - E sua família sabia o que estava acontecendo?

Eve Ensler - Minha irmã e meu irmão claramente não. Mas não sei o que minha mãe sabia consciente ou inconscientemente.

Quando a confrontei anos depois, ela sabia das agressões, via os sinais físicos.

Mas tempos depois ela me disse que eu frequentemente tinha infecções, pesadelos, mudanças de personalidade, e então começou a se lembrar de coisas como o que um tio havia dito, que meu pai dava atenção demais à mim, e começou a juntar as peças.

BBC - Havia alguém que te apoiava quando era pequena?

Eve Ensler - Tive uma tia maravilhosa e uma babá que cuidavam de mim, que me tratavam com amor. Acredito que essas pessoas salvaram minha vida.

BBC - Seu pai parou de estuprá-la, mas começou a te bater horrivelmente. Como lidava com isso quando era pequena?

Eve Ensler - Eu me separava de mim mesma. Me lembro que meu pai me chamava e eu podia adivinhar pelo seu tom de voz o quão forte iam ser os golpes.

Então eu me olhava no espelho e dizia: "agora você vai (embora), não vai estar aqui, não vai sentir nada do que se passa."

BBC - Funcionava?

Eve Ensler - Sim. Frequentemente funcionava. Grande parte da minha vida foi voltar ao meu corpo. Regressar ao meu corpo e ver que era meu.

A separação era um salto imaginativo, que de alguma maneira me levou a escrever, que é essa ideia de criar personagens, de viver em minha imaginação, um lugar que podia me separar da dor que constantemente sentia.

BBC - Como isso afetou seus relacionamentos?

Eve Ensler - Eu escolhi mal. Eu escolhi muito mal (risos). É muito triste dizer, mas nunca senti que merecia ser o objeto único de devoção de alguém. Eu sempre estive na segunda posição. Era a segunda do meu pai, depois de minha mãe.

Eu nunca imaginei que algum homem ou mulher (porque eu estive com os dois) pudesse querer ficar sozinho comigo. Eu sempre era a segunda pessoa na vida da pessoa com quem estava - eu era sempre um caso, ou uma amante.

A autora conta que seu pai a fazia sentir-se culpada
A autora conta que seu pai a fazia sentir-se culpada
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Acho que sempre nos inclinamos para pessoas que são como nossos agressores. Temos a fantasia absurda de que vamos mudá-los, que vamos mudar nossa história. Também porque é tremendamente familiar. Eu nunca escolhi as pessoas que me amavam, porque elas me aterrorizavam. A única vez em que tive amor quando criança, eu fui traída.

BBC - Se lembra de querer, quando criança, que seu pai pedisse desculpas?

Eve Ensler - Constantemente eu escrevia cartas a ele, pedindo desculpas, porque ele me fazia me sentir culpa. "Me desculpa" era meu segundo nome. Mas também havia uma parte de mim que acreditava que seu eu pedisse perdão o suficiente, ele faria o mesmo.

BBC - O que você acha que teria conseguido?

Eve Ensler - Muitas coisas. Teria me libertado de sentir que era a única pessoa má em nosso relacionamento.

BBC - Por que você acha que ele nunca esteve nem perto de se desculpar?

Eve Ensler - Porque meu pai cresceu em uma época em que os homens nunca estavam errados. Ele era o diretor executivo de uma empresa, da minha família, ele sempre teve razão. A ideia de discordar de meu pai era um crime.

BBC - Como você se sentiu quando ele morreu?

Eve Ensler - Foi muito estranho porque, aparentemente, meu pai esteve muito doente por muito tempo, ele teve câncer e minha mãe nunca me ligou para me contar. Fui ver minha mãe alguns dias depois da morte do meu pai e fui até o armário dela, encontrei um suéter, cheirei e disse "bem, esse vai ser o nosso fechamento, segurando seu suéter, assim será meu adeus a você ". O que eu senti sobre a sua morte? Não muito. Eu me senti entorpecida.

Eve Ensler sofreu consequências do abuso a vida toda
Eve Ensler sofreu consequências do abuso a vida toda
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC - Você não estava nem um pouco brava com ele?

Eve Ensler - Acho que levei anos para entender a magnitude do que meu pai fez comigo. Eu acho que isso é uma verdade para qualquer sobrevivente.

Lembro-me de um dia em que eu estava na faculdade, bebendo com alguns amigos, quando contei brincando da vez em que meu pai estava me batendo e pediu para minha mãe lhe trazer uma faca de cozinha para me esfaquear. Minha mãe saiu do quarto, mas felizmente não voltou. Lembro-me de rir dessa história, mas meus amigos ficaram calados e depois disseram "o quê!?"

Foi a primeira vez que recebi um feedback do mundo, uma alerta, de como isso era insano e extremo. E isso me aterrorizou.

BBC - Escrever The Apology foi como uma espécie de terapia?

Eve Ensler - Mudou o centro da história. Meu pai deixou de ser um monstro monolítico para ser alguém que pede perdão, um ser humano frágil e quebrado.

Nesse sentido foi incrivelmente libertador. Posso dizer que provavelmente conheço meu pai melhor do que ele conhecia a si mesmo.

BBC - Quais as razões do comportamento dele?

Eve Ensler - Meu pai foi adorado, mas adoração não é amor. Essa idealização reprime qualidades humanas, como a fraqueza, a vulnerabilidade. Quando estes sentimentos afloravam em meu pai, ele os enterrava, porque não queria decepcionar as pessoas que o haviam idealizado. E eventualmente essas coisas causaram uma metástase. Acredito que é isso que fazemos aos homens: não permitimos que eles seja seres humanos e isso faz com que eles percam a empatia.

BBC - O que te levou a escrever esse livro agora?

Eve Ensler - Nos últimos 21 anos eu fiz parte de um movimento contra a violência contra as mulheres e escutei as piores histórias do mundo. Agora com o movimento #MeToo, me pergunto: onde estão os homens? Nunca vi nenhum homem pedir desculpas autênticas, profundas e públicas. Se os homens não começarem um processo de desculpas, como vai terminar isso?

BBC - Sente que sei pai te pediu perdão através desse livro?

Eve Ensler - Definitivamente.

BBC - Aceita suas desculpas?

Eve Ensler - Sinto que cada pedaço do meu rancor foi embora, já não o sinto, e nesse sentido meu pai se foi também.

BBC - Você consertou o relacionamento com sua mãe?

Eve Ensler - Sim, depois que meu pai morreu. Tivemos alguns confrontos, nas quais ela admitiu sua parte da culpa, se desculpou. E agora estou muito em paz e creio que ela está em paz comigo.

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