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Análise: a realidade é mais absurda do que o pior absurdo

Ignácio de Loyola Brandão faz balanço de 'Não Verás País Nenhum' e diz como a realidade imitou a ficção

19 dez 2018 - 04h41
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Não Verás País Nenhum completa, neste mês, 36 anos. Traduzido em 12 países, vende ainda hoje com tranquilidade e é adotado em vestibulares, quase todos os anos.

Tem sido estudado como ficção científica, mas prefiro chamá-lo de ficção político-burocrática. Há anos, quando me pediam para autografar, eu escrevia invariavelmente: "Tomara que tal futuro jamais aconteça". Recentemente, uma mulher me disse: mas, meu caro senhor, ele já está acontecendo, olhe em volta.

Olhei. Não Verás é hoje. Será mais real amanhã. O aquecimento global, negado pelo presidente eleito, já está aí. Vejam as temperaturas deste dezembro. As temperaturas alucinantes a derreter o asfalto. Os desmatamentos, os buracos no ozônio da atmosfera, o Amazonas se "desertificando" lentamente, as inundações e enchentes.

E, principalmente, as reservas de água potável para a população diminuindo gradualmente. Todos os anos as manchetes são as mesmas: o nível desesperador da Cantareira e nenhuma providência, nenhuma solução. No Nordeste, tudo está seco. As quadrilhas que roubam e vendem as fichas de água que cada um recebe. A urina de todos que é reciclada e transformada em água.

Nos anos 1970, os cientistas mundiais já avisavam: o grande problema não será o fim do petróleo, mas sim o da água potável. Aí está. Olhem a cidade de São Paulo que descrevi há quase quatro décadas. Trânsito caótico, congestionado. O gigantesco congestionamento, os carros mortos nas grandes vias.

Viadutos apodrecidos caindo. Grades em todos os muros, portas de casas e de prédios, jaulas, alarmes, câmeras por toda a parte, focos de luz em cada residência, edifício, prédio. As guaritas, milhões delas, a insegurança de cada um, o medo nos cruzamentos, os altíssimos muros a aprisionar casas em bairros classe média alta.

Carros fortes sendo assaltados, caixas eletrônicos dinamitados, pessoas sequestradas. E os condomínios fechados? A princípio, eram para pessoas de altíssimo poder. Depois, para pessoas com médio poder. Depois, para políticos, altos executivos, e assim até chegarmos aos impenetráveis e atuais condomínios, que já trazem em si os problemas de qualquer cidade grande, insegurança, medo, roubos, tráfico de drogas, gangues juvenis.

As comidas industrializadas. E, já em 1982, estavam as previsões das grandes manifestação de rua, cada vez maiores, os sem-terra, os sem-teto, os sem nada.

Olhem nas gôndolas dos supermercados o número de bisnagas de "cheiros" artificiais para pulverizarmos e mudar a atmosfera de nossas casas.

Como escrevi? Lendo, lendo e elevando ao absurdo notícias que eram possibilidades futuras levantadas por cientistas do mundo. Escrevi olhando pela janela de meu apartamento na Rua Bela Cintra, 1.413.

Para o escritor, o absurdo não existe. Porque a realidade é mais absurda do que o pior absurdo.

Estadão
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