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Livro revela pensador Anatol Rosenfeld como crítico de cinema

Sexta, 24 de maio de 2002, 13h47

Passado mais de um século desde sua invenção, o cinema permanece como o grande e desejado enigma das artes, isto depois de um período inicial em que lhe colocaram a tarja de objeto vagabundo, negando-lhe a magnitude conferida à literatura e à pintura. Hoje, ninguém perde tempo em discutir se cinema é arte ou não, mas, em compensação, anunciam seu fim. O cinema acabou? Não mais do que o teatro e a história, a julgar por um crescendo de livros editados no Brasil nos quais técnicos, pensadores e editores se dispõem a analisá-lo e aperfeiçoá-lo com doses de paixão.

Na Cinelândia Paulistana é uma dessas publicações, lançada como resultado da pesquisa de Nanci Fernandes sobre um viés pouco conhecido na carreira do pensador especialista em teatro Anatol Rosenfeld (1912-1973), o de crítico de cinema. Este filósofo alemão fugido do nazismo desembarcou no Brasil em 1936, disposto a entender a língua portuguesa à moda do que fizeram Otto Maria Carpeaux e Paulo Rónai, estrangeiros que se tornaram professores dela. Rosenfeld foi original entre estes três porque viveu de cidade em cidade brasileira como caixeiro viajante por quase dez anos, antes de se atrever aos jornais. Em 1945, já se podia dizer à vontade com o português aqui falado. Depois da lida do comércio, pôs-se a dar lições de pensamento.

As críticas cinematográficas de Rosenfeld eram brindes de astúcia, humor e generosidade, feitas não só para compreender o cinema, mas para organizá-lo aos olhos do leitor, especialmente aquele da revista Iris, que fornece a maior parte das resenhas deste livro. Rosenfeld foi, como jornalista, um crítico de construção, não de desmonte, revelador do enigma cinematográfico pela exposição simples de sua metodologia, não pelo escurecimento dela. Sua formação de filósofo esteve mínima e sabiamente perceptível nos textos.

Então, como Carpeaux e Rónai, Rosenfeld percebeu aqui um país sem universidade e conhecimento sistematizado, e se ocupou em ser ele próprio uma parte da academia brasileira. Quatro anos antes de começar a escrever e a traduzir para os jornais, a revista Clima, de Antonio Candido, Decio de Almeida Prado e Paulo Emilio Salles Gomes, encetara a fundação de uma mentalidade crítica que se pretendia moderna, em acompanhamento tardio à revolução ficcional operada por Oswald de Andrade e Mário de Andrade nos anos 20. Rosenfeld queria modernizar a crítica, sim, mas também torná-la apetitosamente simples, ao contrário da pretensão dos sóbrios meninos de São Paulo, que a desejavam, de certa forma, professoral.

O gosto de Rosenfeld parecia bastante diverso daquele de um Paulo Emilio, o grande especialista de cinema nascido em Clima. O alemão, como contraponto, era plano e claro, um bom comerciante disposto a trocar palavras com o leitor. Seus textos se revelavam exuberantes pela simplicidade, pelo uso repetido de verbos de ligação, pela direção com que convencia o público da leitura que fazia dos filmes, pelo dom de antecipar um talento cinematográfico coberto à vista desavisada. Este caminhar na direção contrária dos chato-boys (conforme a caçoada de Oswald aos meninos de Clima) o tornava um pensador livre e bem-humorado. Rosenfeld queria ser lido com prazer, não só com correção.

Na Cinelândia Paulistana dá conta de sua atividade como crítico de cinema entre 1945 e 1952, e oferece ao final breve panorama de suas análises sobre fotografia (ele que também comentara literatura, religião, teatro e futebol). Rosenfeld escrevia críticas que hoje podem ser tidas como longas, mas que à época sinalizavam com brevidade o enredo, a análise propriamente dita e um julgamento em poucas palavras da atuação de um ator, de um diretor ("cenarista" para Rosenfeld) e de um cenógrafo.

Entre os maiores diretores, para Rosenfeld, esteve o inglês Charles Chaplin, em parte porque o ideário de cinema do cineasta se assemelhou ao seu, como crítico. Chaplin expôs teses importantes com enganosa simplicidade, e o público o amou por isso, ao mesmo tempo que se formou com ele, de maneira semelhante àquela que Rosenfeld queria emplacar em seu leitor.

Neste livro, o crítico faz uma análise exata de Luzes da Cidade, filme que Chaplin rodou em 1931. Para ele, embora magnífica, era esta uma obra propositalmente rala em recursos cinematográficos. "O filme nunca é prejudicado pela falta de virtuosismo óptico: a atuação de Carlitos substitui a atividade da câmera", considerava. Segundo seu raciocínio, Chaplin necessitava da câmera impassível, ao contrário de todos os outros diretores que se perguntavam onde colocá-la. Para Rosenfeld, Chaplin não desejava o espectador consciente da existência de uma máquina fotográfica, uma vez que nos seus filmes valia somente o coração - "o coração humano não sufocado pela máquina da sociedade".

Desta observação, passa Rosenfeld à análise do vagabundo de Carlitos, inspirado, ele crê, nos tipos de Jack London, Herman Hesse e Knut Hamsun, e argumenta que Chaplin fez tremendo sucesso com o personagem porque, ao caracterizá-lo, "golpeou a dignidade", a começar pela adoção de uma estética pessoal que citava e ultrajava os símbolos da riqueza (o chapéu, o bigode, a bengala). "Este atentado estético à dignidade, aos valores exteriores, mas consagrados, da sociedade é realmente um ato de libertação: o peso morto de valores ocos é sacudido e solapado, e debaixo dessa grossa crosta inanimada surgem os valores mais altos do vagabundo, duma dignidade mais essencial e mais profunda - os valores do ser humano tout court."

Depois de Luzes da Cidade, lembra Rosenfeld, certa parte da crítica internacional nunca perdoou a Chaplin que abandonasse Carlitos e passasse a ver vagabundos não em gente pobre, mas em "seres respeitáveis" como o protagonista de Monsieur Verdoux (1947), para quem o assassinato era uma extensão dos negócios. Quem esteve à altura da liberdade de Chaplin como criador? "Ele criou uma arte popular no melhor sentido da palavra; a sua lealdade a si mesmo é uma conquista autêntica, que tem de ser afirmada e mantida através de uma luta cada vez mais árdua, cada vez mais tenaz, na medida em que progride na exploração do sentido de nossa época", diz o crítico.

Rosenfeld analisa inúmeros filmes, muitos deles hoje de todo esquecidos, filmes que vinham sendo lançados à época e que mereciam dele, fossem bons, péssimos ou medíocres (gostava de finalizar as resenhas assim, apontando a mediocridade, se a percebia), uma atenção especial e generosa. De Chaplin, ele passa à análise de alguns nomes que se tornariam ainda maiores, como o de Billy Wilder. É delicioso que ele aponte um grande defeito em um filme-símbolo como Crepúsculo dos Deuses, ao lhe denunciar a adoção do palavrório como recurso narrativo.

Rosenfeld também condena, em Alfred Hitchcock (outro a quem não convém censurar, pelo menos desde o advento dos críticos franceses), a adoção de um plano realista para a trama assassina de Pacto Sinistro (1951): se o diretor inglês tivesse olhado a história pelos olhos do passageiro de trem que sugere ao companheiro de cabine matar a esposa em troca de ele lhe matar o pai, o filme seria mais rico, psicológico, algo mais envolvente.

Em Hitchcock, de forma deliciosa, ele vê, em contrapartida, o valor da colocação dos objetos de cena como personagens (por exemplo, o isqueiro e os óculos em Pacto Sinistro), e valoriza um certo cinema de indícios como exercício narrativo. Ao criticar Sansão e Dalila, de Cecil B. de Mille, ele diz: "A melhor figura do filme é, sem dúvida, o leão - certamente emprestado pela Metro aos estúdios da Paramount. É um leão-astro, ciente da importância das suas funções e perfeitamente integrado ao tecnicolor do filme."

E aqui passamos ao que o cinema é hoje, para diretores e roteiristas americanos: uma fórmula a ser aperfeiçoada. Dois lançamentos, Sobre Direção de Cinema, de David Mamet, e Como Resolver Problemas de Roteiro, de Syd Field, buscam, incessantes, recuperar a glória americana na barafunda "claudicante" (no dizer de Mamet) em que, tecnicamente, a arte se meteu no país. No caso do diretor Mamet (Oleanna e Cadete Winslow), o livro transcreve suas palestras feitas na Universidade de Columbia em 1987, quando, roteirista consagrado, ainda dirigia o segundo de seus dez filmes. Mamet se desculpa por ter sido ainda um neófito à época em que se viu professor.

Seu livro, na contramão da apreciação crítica de Anatol Rosenfeld, é feito para livrar os diretores do vício da "steadicam", aquela câmera que passeia segura pelos ombros, sem permitir que a imagem trema. O advento da steadicam teria reduzido o diretor americano, a seu ver, a "seguir o protagonista", e limitado sua inteligência (é de pensar o que diria o autor de Lars von Trier ou Glauber Rocha). Seu objetivo com os alunos de Columbia é lhes ensinar a cultivar o corte, o que equivale, em cinema, a pôr a câmera em algum lugar.

O livro encena as perguntas de Mamet e as angustiantes respostas de seus alunos, que se vêem na condição de limpar o cérebro do que ele acredita serem preconceitos e limitações narrativas. O diretor quer implantar nos estudantes o princípio do kiss ("keep it simple, stupid", ou "seja simples, idiota"); deseja, como Hitchcock na observação de Rosenfeld, que as caracterizações do personagem não sejam subjetivas, mas palpáveis, não se demorem em palavras, mas em objetos, sinais e gestos.

A intenção parece louvável, mas o problema do livro é que ele se torna histérico e exasperado, para não dizer ridículo, em certas passagens. O desespero de Mamet enquanto professor é o mesmo do personagem que o comediante Jerry Seinfeld encenou no programa Saturday Night Live em 1992, um professor de história que tenta explicar o nazismo a seus alunos, sem perceber que eles nem mesmo sabem de onde a palavra Europa vem. Mamet, diretor respeitado, mas ele mesmo por demais apegado à palavra, contra aquele cinema de indícios, de óculos e isqueiros de Hitchcock, acaba por professor aloprado entre alunos lentos, cuja única intenção é fazer o personagem caminhar.

Resta Syd Field, o otimista Syd Field, no seu Como Resolver Problemas de Roteiro. Não há como esconder o ridículo deste livro, porque Field, roteirista de Como Água para Chocolate e autor de três outros livros de mesma linha editados aqui, nem mesmo faz o que promete, ou seja, resolver os problemas apresentados pelos roteiristas (o que dizer, então, de uma concepção de cinema?). Supostamente para solucionar as questões colocadas por seus alunos, ele insere sua visão de que tudo deve provocar "ação" e inventa caminhos risíveis para uma centena de situações, e que inviabilizam a simplicidade e o gosto. Se há em Mamet alguma boa intenção não comunicada, em Field há a comunicação, por certo, mas de um ideário medíocre, para citar Rosenfeld. Pena que seja este um livro adotado por 250 faculdades americanas. Isto equivale a dizer que algo está errado no cinema da América, algo que dá ao conceito de vagabundo um sentido que o cinema de Chaplin não previra.

InvestNews/ Gazeta Mercantil

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