Alimentos como salgadinhos, biscoitos e outras formulações industriais, conhecidos como ultraprocessados, estão substituindo a comida de verdade e representam um grande desafio para a saúde pública, alertam pesquisadores em uma série de artigos publicada nesta terça-feira, 18, na revista The Lancet.
Feitos a partir de ingredientes como gorduras hidrogenadas, isolados proteicos, xaropes de glicose e frutose e diversos aditivos (incluindo corantes, aromatizantes, emulsificantes e adoçantes), os ultraprocessados são descritos como produtos desenvolvidos para substituir alimentos in natura e refeições caseiras de preparo tradicional.
"O consumo crescente de ultraprocessados está reestruturando as dietas no mundo inteiro, substituindo alimentos in natura e minimamente processados", diz Carlos Monteiro, fundador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e criador do conceito de ultraprocessados.
Liderado pelo pesquisador brasileiro, o primeiro artigo da coletânea aponta que essa substituição tem degradado padrões alimentares tradicionais e a qualidade da dieta, e está associada ao risco aumentado de múltiplas doenças crônicas.
Segundo Monteiro, a mudança é impulsionada por corporações globais que priorizam produtos ultraprocessados, apoiadas por estratégias de marketing e lobby político que dificultam a adoção de políticas de alimentação saudável.
De acordo com a pesquisa, na Espanha e na China, a presença diária desses produtos na alimentação aumentou 21% e 6%, respectivamente, nas últimas três décadas. Já Brasil e México registraram elevação de 13% nos últimos 40 anos.
No Reino Unido e nos Estados Unidos, mais de 50% da ingestão energética provém de itens altamente industrializados.
O artigo ressalta que dietas baseadas em ultraprocessados são mais calóricas, empobrecem o perfil nutricional e expõem a população a maior ingestão de substâncias nocivas e ao risco aumentado de uma ou mais doenças crônicas, como obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e depressão, além de morte precoce por todas as causas.
Para Mathilde Touvier, professora do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França e coautora do estudo, cada vez mais evidências sugerem que, além dos perfis nutricionais, os alimentos ultraprocessados ??prejudicam a saúde. "Isso acontece por meio da desestruturação da matriz alimentar, de múltiplos aditivos alimentares e de contaminantes criados durante o processamento ou provenientes da embalagem."
Já o terceiro e último artigo da publicação foca as grandes corporações alimentícias, classificadas como principais responsáveis pela expansão dos ultraprocessados. Os autores defendem uma resposta global de saúde pública para conter esse avanço.
Eles destacam que os fabricantes utilizam ingredientes baratos para reduzir custos e usam estratégias de marketing agressivas e embalagens pensadas para estimular o consumo. De acordo com o levantamento, os ultraprocessados representam o setor mais lucrativo da indústria alimentícia, com vendas anuais de US$ 1,9 trilhão, cerca de R$ 10,1 trilhões. Para se ter ideia, o PIB do Brasil em 2024 foi de R$ 11,7 trilhões.
Para o pesquisador Simon Barquera, do Instituto Nacional de Saúde Pública do México, as empresas costumam se apresentar como parte da solução, mas suas ações contam outra história. "São centradas em proteger lucros e resistir à regulação efetiva", diz o especialista, um dos autores do trabalho.
Os cientistas defendem uma resposta global coordenada para proteger os processos de formulação de políticas das interferências da indústria, evitar conflitos de interesse com profissionais e organizações de saúde e formar uma rede internacional capaz de enfrentar o poder corporativo.
Ao todo, os três artigos são assinados por 43 pesquisadores de diversos países, que afirmam que enfrentar os ultraprocessados exige uma nova visão de sistemas alimentares, com priorização de alimentos frescos, cozinhas tradicionais e produção local.
"Enfrentar esse desafio exige que os governos ajam com coragem e coordenação, adotando medidas amplas, desde incluir indicadores de ultraprocessados nos rótulos frontais até restringir a publicidade e implementar impostos sobre esses produtos, de modo a financiar o acesso a alimentos nutritivos e acessíveis", explica Camila Corvalán, professora da Universidade do Chile e uma das autoras da série.
O que são alimentos ultraprocessados?
O Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado em uma parceria do Ministério da Saúde com o Nupens/USP e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), classifica os alimentos com base no grau de processamento. Para isso, usa a classificação Nova, desenvolvida pelo Nupens, que divide os alimentos em quatro grupos:
- Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos etc.) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados, ou os grãos de café, que são torrados e moídos).
- Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
- Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passarem por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
- Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.