Rochas formadas por plástico estão se espalhando pela Ilha da Trindade, ameaçando áreas de desova de tartarugas-verdes e evidenciando a crise global da poluição plástica até em locais remotos.
Rochas formadas a partir de resíduos plásticos estão se multiplicando na Ilha da Trindade, a região mais remota do território brasileiro, a cerca de 1.200 km da costa do Espírito Santo. Segundo pesquisadores, fragmentos desse material já alcançaram os ninhos de tartarugas-verdes em uma das principais áreas de reprodução da espécie no Brasil.
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A descoberta faz parte de uma pesquisa inédita que teve início em 2019. “Em um dos trabalhos de campo, me deparei com um tipo de material que parecia uma rocha, mas era feito de plástico. Olhei e pensei: ‘O que é isso?’”, relatou ao Terra a pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e da Western University (Canadá), Fernanda Avelar.
Como trabalha com geologia ambiental, Fernanda conta que já vinha observando a quantidade de lixo que chega a uma ilha tão remota quanto Trindade. "Ver esse tipo de material se integrando aos processos geológicos mostra como o problema é grave", destacou.
As chamadas "rochas de plástico" já foram identificadas em outras partes do mundo. A pesquisadora brasileira explica que o termo técnico usado é plástico aglomerado, criado pela também pesquisadora Patrícia Corcoran, que identificou a formação no Havaí em 2014.
Essas rochas se assemelham às sedimentares, sendo formadas por plástico derretido que funciona como matriz, unindo outros materiais. “A matriz é o plástico fundido. A ele se agregam fragmentos geológicos, como areia e pedras, materiais biológicos, como conchas, e até poluentes não fundidos, como pedaços de madeira e metal”, explicou a geóloga.
A análise mais recente do lixo da ilha revelou que a maior parte dos resíduos tem origem em atividades marítimas e pesqueiras, com destaque para bóias e cordas de grande porte. Também são comuns pequenas esferas de plástico puro usadas como matéria-prima industrial. As praias mais afetadas são a Praia das Tartarugas, Praia dos Cabritos e Praia Vermelha.
Alerta para a reprodução das tartarugas
A fase mais recente da pesquisa, com publicação prevista no Marine Pollution Bulletin, revela que essas rochas estão se espalhando por toda a ilha. Monitoradas ao longo de cinco anos, elas têm sido erodidas, fragmentadas e transportadas pelos processos naturais --e estão chegando justamente à área mais sensível: a Praia das Tartarugas, o principal ponto de desova da tartaruga-verde no Atlântico Sul.
“Encontrei essas rochas enterradas nos ninhos. As tartarugas escavam o solo para colocar seus ovos, e o plástico está lá, misturado à areia”, exemplificou a pesquisadora. “A chance de esse material ser soterrado e preservado nas camadas de areia é muito alta. É um indício de que ele pode ficar registrado no tempo geológico", acrescentou.
Embora ainda não haja um estudo específico sobre os impactos diretos dessas rochas nas tartarugas e em todo o ecossistema da região, Fernanda ressalta que a literatura científica já relaciona a poluição plástica a um aumento na mortalidade da espécie, obstruções no caminho até o mar e até o afinamento das cascas dos ovos.
Um reflexo do Antropoceno
O lixo que chega à Ilha da Trindade tem origem global. Localizada no meio das rotas de navegação do Atlântico Sul, a ilha recebe resíduos de diversas partes do mundo. “Encontramos lixo de origem asiática, europeia, americana e também latino-americana”, afirmou a geóloga, citando registros de países como Japão, China, Espanha e Estados Unidos.
Segundo a pesquisadora, a preservação desse tipo de formação em um ambiente protegido --a ilha é classificada como Monumento Natural (MONA)-- reforça uma discussão central para a ciência: a do Antropoceno, a proposta de uma nova era geológica marcada pela presença humana.
“Essas rochas estão sendo soterradas nos ninhos das tartarugas. Isso é um indicativo de que elas serão preservadas no registro geológico. No futuro, geólogos poderão encontrar camadas com esses resíduos plásticos misturados à areia, marcando o impacto humano no planeta”, afirmou. "Isso mostra que não há mais escapatória. A gestão global do plástico está falhando e precisa mudar com urgência", alertou.
Um arquipélago protegido
Apesar de ser inabitado, o Arquipélago de Trindade e Martim Vaz sofre com os impactos da poluição, especialmente por resíduos sólidos que chegam pelo oceano. Desde 2007, a gestão ambiental da Ilha de Trindade é responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) e integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA).
O arquipélago faz parte da Cadeia Vitória-Trindade, uma formação submarina com cerca de 30 montes. Parte da Ilha de Trindade está inserida no Monumento Natural (MONA) das Ilhas de Trindade, Martim Vaz e Monte Columbia. O restante do território marinho ao redor, até o limite de 200 milhas náuticas, está protegido pela Área de Proteção Ambiental (APA) do Arquipélago de Trindade e Martim Vaz. Juntas, essas são as maiores unidades de conservação federais do país.
Os objetivos de gestão da MONA e da APA incluem, entre outros pontos: proteger os ecossistemas marinhos, incentivar pesquisas científicas e assegurar a soberania nacional.
Por sua localização remota, o arquipélago apresenta um elevado grau de endemismo, ou seja, muitas espécies da fauna e flora que ocorrem ali não existem em nenhum outro lugar do mundo e muitas delas estão ameaçadas de extinção.
Segundo o ICMBio, ilhas oceânicas e montes submarinos são estratégicos para o ciclo de vida e migratório da megafauna marinha. Esses ambientes servem como áreas de alimentação, descanso e reprodução para diversas espécies de peixes, aves, mamíferos e tartarugas marinhas.
Apesar de não ter população residente, a Marinha do Brasil mantém presença permanente no arquipélago desde 1957, com apoio a atividades de pesquisa e segurança. A Estação Científica da Ilha da Trindade (ECIT), localizada no Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade (POIT), acolhe pesquisadores com projetos aprovados pelo CNPq, em parceria com o programa PRÓ-TRINDADE, vinculado à Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (SECIRM).
Diversas instituições brasileiras utilizam a ECIT para estudar a biodiversidade local, comportamento animal, dinâmica ecológica, meteorologia e oceanografia, além do controle de espécies exóticas invasoras.
A poluição chega mesmo sem pessoas
A coleta e o monitoramento do lixo na ilha são realizados pelo ICMBio, com apoio de voluntários e parceiros científicos. As ações de limpeza das praias começaram de forma estruturada em 2023, com o apoio de diversas instituições e programas. Essas iniciativas, de acordo com o ICMBio, fortalecem a presença científica na ilha e ajudam a construir estratégias de conservação, monitoramento e combate à poluição mesmo em um dos ambientes mais isolados do País.
O monitoramento de resíduos sólidos ainda está em fase preliminar, mas serve de base para futuras pesquisas e tomadas de decisão. A coleta é feita sempre que possível, durante a presença de servidores ou voluntários na ilha, respeitando a logística das atividades do POIT e a supervisão da Marinha.
A metodologia segue um protocolo padronizado que orienta a quantificação de resíduos em praias. O material é levado ao laboratório da ECIT, onde é analisado, contabilizado e separado para reciclagem ou incineração. Os resíduos orgânicos são compostados.
Em 2024, a coleta foi realizada nas praias dos Andradas, Tartarugas e Cabritos. Em 2025, foi repetida nas praias dos Cabritos e das Tartarugas, no mês de agosto. Essas não são as únicas praias impactadas, mas são as mais acessíveis para aplicação do protocolo.