Quando a Ferrari se recusou a usar vermelho na F1

Nos GP dos Estados Unidos e México de 1964, a Ferrari correu com as cores azul e branca por conta de uma briga política

18 out 2021 - 18h30
(atualizado às 20h09)
John Surtees com a Ferrari 156 no GP do México de 1964
John Surtees com a Ferrari 156 no GP do México de 1964
Foto: Scuderia Ferrari / Twitter

Quando falamos de vermelho no automobilismo, a associação com a Ferrari é inevitável. Em raras vezes a equipe não correu de vermelho, a cor oficial da Itália. Algumas dessas foram nos GPs da Bélgica de 1956 e 1961, quando os belgas Paul Frere e Olivier Gendebien pilotaram carros da montadora e usaram amarelo (cor de competição da Bélgica). Porém, o que aconteceu nas duas últimas etapas de 1964, que inclui o GP dos Estados Unidos e o GP do México, foi algo inédito. 

Para entendermos como a Ferrari se recusou a correr de vermelho, temos que voltar a 1962 e também mudar de categorias, indo para os carros esportivos, que tem como sua principal corrida as 24 Horas de Le Mans. Naquele ano, a Ferrari estava tentando homologar a Ferrari 250 GTO, que hoje é o carro mais caro do mundo, para as competições como um carro GT, e não como um protótipo.

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A Ferrari 250 GTO é atualmente o carro mais caro do mundo, já chegou a ter uma unidade vendida por US$ 70 milhões
Foto: Ferrari / Twitter

Existe uma lenda que diz que Enzo não tinha a quantidade necessária para homologar o carro, que eram 100 unidades. Sendo assim, chamou os funcionários da FIA para sua fábrica em Maranello, abriu um galpão e os fiscais contaram uma quantidade que dava menos do que o necessário. Porém, Enzo prometeu que tinha mais carros em outro galpão.  Ele bebeu mais um café e disse que depois iam conferir os outros carros. Nesse tempo, os funcionários da Ferrari teriam mudado os mesmos carros para outro galpão. Os funcionários da FIA contaram os mesmos carros sem perceber, com a 250 GTO conseguindo a homologação. 

É uma história doida e, até de certo ponto, divertida, mas infelizmente a realidade foi bem mais sem graça. A Ferrari não precisou homologar a GTO como nova, mas sim como a homologação da 250 GT SWB, um carro de 1960 que já estava homologado. Dessa forma, as 26 unidades do novo carro passaram tranquilamente pela homologação da FIA para entrar na classe 3.0 GT, que eram para carros de produção com motores de até 3.0 litros (3000 cc). 

Cabe lembrar que a Ferrari na época não era a montadora rica de hoje. Os ganhos vinham da venda de carros e quase tudo era gasto com as corridas, o que fazia ela não ter condições de fazer 100 unidades de um único modelo. Além disso, Enzo Ferrari usava o fato da Ferrari fazer poucas unidades como marketing.

Em 1963, a Ferrari conquistou a vitória em Le Mans com a Ferrari 250P, um protótipo, o primeiro carro com motor traseiro a vencer a corrida. A equipe liderada pelo projetista Mauro Forghieri agora tinha um desafio: colocar a mesma ideia do motor traseiro 3.0 V12 em um carro GT, que seria chamado de 250 LM, que por sua vez parecia mais com a Ferrari 250P do que com a linha 250 GT.

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A Ferrari 330P foi um divisor de águas em Le Mans
Foto: Wikimedia Commons

A FIA percebeu isso e se recusou a homologar o carro com um 250 GT. Assim, a Ferrari não teria como homologar o carro como GT e ele seria um protótipo. Enzo Ferrari ficou enfurecido: ameaçou boicotar eventos, se retirar das competições... Mas nada adiantou, a entidade estava irreversível. Nessa situação, dois 250LM foram enviados a Le Mans em 1964. A cilindrada foi aumentada de 3000cc para 3300cc, entrando na classe P 4.0. e fracassaram, com os dois abandonando. 

A última cartada de Enzo Ferrari para conseguir a homologação era pressionar o Automóvel Clube Italiano (ACI) para conseguir apoio, o que também não deu certo: a entidade não quis apoiar a Ferrari. Enzo ficou tão furioso que entregou sua sua licença de competir e, em uma época onde as equipes eram obrigadas a correr na F1 pelas cores do país que representavam, Enzo prometeu nunca mais usar vermelho. Em outras palavras, não usar as cores da Itália.

A Ferrari 250 LM foi a razão da confusão com a FIA
Foto: Wikimedia Commons

Quando tomada essa decisão, faltavam duas etapas na F1: os GPs dos Estados Unidos e o GP do México. A Ferrari liderava os construtores, com 37 pontos contra 36 da BRM e 35 da Lotus. O piloto John Surtees estava em terceiro no campeonato, com 28 pontos, contra 32 de Graham Hill (BRM) e 30 de Jim Clark (Lotus). 

Obviamente a equipe italiana não poderia abrir mão do campeonato. Então, o italiano Luigi Chinetti, dono da North American Racing Team, que representava os interesses da Ferrari nos Estados Unidos, além de competir em Le Mans com carros da marca, resolveu o problema: ele inscreveu Surtees e o outro piloto da Ferrari, Lorenzo Bandini, sob tutela da NART. As cores? Azul e branco, as cores dos Estados Unidos nas competições de automobilismo.

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A cor deu sorte à Ferrari, Surtees conquistou o campeonato com dois segundos lugares, acabou se tornando o único piloto a ser campeão da F1 e da MotoGP. Na última etapa, nos EUA, Surtees teve um golpe de sorte: Jim Clark liderava a prova e seria campeão com este resultado. Porém, seu carro quebrou faltando duas voltas para o fim. O britânico também se tornou o primeiro campeão de F1 que não fez mais pontos no geral, ele fez 40 contra 41 de Graham Hill. Mas como havia a regra do descarte, que só considerava os seis melhores resultados, Hill só teve 39 pontos contabilizados.

John Surtees comemorando seu único título na F1
Foto: Scuderia Ferrari / Twitter

Após toda a polêmica, Enzo Ferrari voltou atrás em sua decisão e retornou ao uso do vermelho logo na temporada seguinte. Desde então, a Ferrari nunca mais deixou de usar a cor com a equipe oficial. E sobre a Ferrari 250 LM: em 1965, ela se tornou a última Ferrari a vencer Le Mans no geral, em uma edição bem maluca onde os vencedores na verdade estavam tentando quebrar o carro. Mas essa é uma história que ainda vai ser contada em outro texto…

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