Quem foi Vitrúvio, genial arquiteto militar que inspirou obra icônica de Leonardo da Vinci

As teorias de Vitrúvio influenciaram o design e a construção ao longo dos séculos — seus conceitos de beleza e harmonia foram particularmente seguidos pelos grandes arquitetos do Renascimento.

14 ago 2022 - 07h49
As teorias de Vitrúvio influenciaram o design e a construção ao longo dos séculos
As teorias de Vitrúvio influenciaram o design e a construção ao longo dos séculos
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Há pouco mais de 2 mil anos, um soldado e engenheiro aposentado escreveu o livro que provavelmente é o mais influente da história da arquitetura.

Trata-se do arquiteto romano Vitrúvio. Sua principal obra De Architectura — também conhecida como Os Dez Livros da Arquitetura — é o tratado mais antigo sobre essa disciplina de que se tem notícia.

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A obra inclui não apenas conselhos práticos para projetar e construir templos e residências, educar e a capacitar arquitetos, mas também um incrível conjunto de informações sobre a tecnologia e engenharia romana, desde máquinas de guerra até aquedutos e relógios de água.

As teorias de Vitrúvio influenciaram o design e a construção ao longo dos séculos. Seus conceitos de beleza e harmonia foram particularmente seguidos pelos grandes arquitetos do Renascimento.

As estruturas do arquiteto italiano Andrea Palladio, as residências, basílicas e pontes de Veneza, outros edifícios de épocas posteriores em estilo palladiano, como o Salão de Banquetes do Palácio de Whitehall, em Londres, e a Casa Branca, nos Estados Unidos — todos eles devem sua inspiração a Vitrúvio.

Suas discussões sobre a relação entre as proporções perfeitas da arquitetura e do corpo humano inspiraram um dos desenhos mais famosos do Renascimento: o Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci.

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Suas ideias permaneceram fundamentais para a arquitetura até o século 18 — e, segundo alguns, até muito tempo depois.

A maior parte do que se conhece sobre Vitrúvio é o que se pôde extrair do seu livro e de menções feitas por escritores que viveram pouco depois dele.

Era de expansão e construção

Estima-se que ele tenha nascido entre 80 e 70 a.C., na Roma Antiga. Seu nome completo era Marco Vitrúvio Polião, mas não existe certeza sobre seu primeiro e último nome. Por isso, foi simplificado como Vitrúvio.

Vitrúvio viveu em uma época de expansão do Império Romano e foi patrocinado por César Augusto
Foto: WIKIPEDIA DOMINIO PÚBLICO / BBC News Brasil

Ele viveu em um período de turbulência política.

Depois de décadas de guerras civis, Roma passava por uma transição, deixando de ser uma república para se tornar o que hoje é chamado de Império Romano. Novos grupos sociais estavam surgindo e alcançando posições de poder, às quais antes não tinham acesso.

Vitrúvio combateu na Gália sob o comando de Júlio César e presenciou em seguida a ascensão do imperador César Augusto — filho adotivo do primeiro —, a quem dedicou seu livro De Architectura.

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Em sua obra, ele deixa subentender que foi protegido da irmã de César Augusto, Otávia, e que, além de servir no exército, construiu uma basílica em Fano, na costa do mar Adriático. Existem também evidências de que ele foi ativo em setores da engenharia e que provavelmente inventou um calibrador de canos para aquedutos.

O novo imperador César Augusto estava interessado não apenas na conquista do mundo conhecido, mas também em construções que ampliassem a majestade do império, segundo Alice König, professora de estudos latinos e clássicos da Universidade St. Andrews, na Escócia.

"Apesar da comoção e da guerra civil, o império romano vem se expandindo. Há muita riqueza entrando em Roma, além de novas influências culturais. Muitos romanos ricos estão construindo residências no litoral e existe grande aumento do interesse pela arquitetura", explica König.

"Vitrúvio imaginou que seria o momento de publicar seu livro, como forma de auxiliar César Augusto nas suas aspirações de grandeza e construção", acrescenta a professora.

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Os princípios da boa arquitetura

As fortificações de uma cidade segundo o primeiro livro de Vitrúvio, em desenho do século 16
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

De Architectura é composto de 10 livros. Seu objetivo principal é estabelecer o que faz um arquiteto, que espécie de educação é necessária, os tipos de edifícios e estruturas que competem a ele projetar, os princípios e ideias sobre a construção e a importância de imitar a natureza como ponto de partida fundamental para o design.

Vitrúvio defende que a arquitetura está no mesmo nível das outras profissões consideradas nobres, como a oratória e o direito. Seus primeiros livros oferecem uma longa relação de características e disciplinas que o arquiteto deve dominar.

Estas disciplinas incluem a matemática, a geometria, a música (para conhecer a acústica) e a filosofia (para ser justo e entender a natureza). E o arquiteto também deve conhecer história — em resumo, deve ter cultura.

"Vitrúvio afirma que o arquiteto que tenha subido todos os degraus desses estudos pode alcançar o templo da arquitetura. Ele deixa implícito que a arquitetura está acima de todas essas outras disciplinas", explica Alice König.

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Um dos seus conceitos mais influentes é a chamada Tríade Vitruviana — a noção de estabilidade, utilidade e beleza (firmitatis, utilitatis, venustatis) como as três qualidades de uma estrutura. Elas se unem para criar algo belo, coerente, em harmonia com a natureza. Não se pode ter uma sem a outra.

Esta noção ficou famosa ao longo da história como base da boa arquitetura, equilibrando a necessidade com a estética para criar algo que seja belo. Para Vitrúvio, a beleza reside na apreciação do mundo natural.

Vitrúvio enfatizou a decoração das residências particulares
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Os 10 livros da Arquitetura

- A educação, qualificação e princípios do arquiteto: incluem o planejamento urbanístico e a arquitetura em geral.

- Materiais de construção: suas origens, funcionalidade e detalhes.

- Matemática e proporções: fundamentos da arquitetura clássica.

- Estilos arquitetônicos: dórico, jônico e coríntio.

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- Edifícios públicos: incluem teatros e edifícios administrativos, além de conselhos sobre a acústica.

- Residências: sua localização, segundo o clima e orientação das moradias conforme suas funções.

- Ornamentação, calçadas e murais: incluindo a origem e o uso das cores.

- Fontes de água e aquedutos.

- Ciências que influenciam a arquitetura: astronomia, geometria, matemática e filosofia.

- Engenharia e construção: máquinas, dispositivos e armas de guerra.

Estes mesmos princípios são aplicados tanto aos templos e outros edifícios públicos quanto às residências particulares, especialmente às casas dos mais ricos. Os livros 6 e 7 tratam da decoração interior, da pintura das paredes e do reboco.

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Vitrúvio ensina que cada cômodo deve atender ao seu propósito e ser perfeitamente orientado. As bibliotecas devem ser voltadas para o norte, para que os livros não fiquem úmidos. Os refeitórios, para o oeste, para aproveitar o sol poente.

As casas devem ser posicionadas de forma a ajustar-se ao clima do local onde estão sendo construídas.

Uma nova linguagem

As ideias de Vitrúvio sobreviveram graças às cópias feitas da sua principal obra, 'De Architectura'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Os três últimos livros eram os que mais interessavam a Vitrúvio — particularmente o último, sobre as armas de guerra.

O arquiteto tinha muito interesse na mecânica e nos detalhes das armas. Mas o leitor atual tem muita dificuldade de entender, uma vez que as ilustrações foram perdidas e o uso do idioma não é muito claro e preciso.

"Acredito que ele estivesse tentando criar uma nova linguagem", avalia Serafina Cuomo, professora de história da Universidade de Durham, na Inglaterra.

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"Nada disso existia antes em latim, e grande parte da terminologia técnica que ele tentou empregar não existia."

Cuomo afirma que, às vezes, Vitrúvio tenta transliterar termos gregos ou inventá-los em latim.

"É um esforço enorme para criar uma nova linguagem técnica para a arquitetura."

Não existem referências de que ele tenha sido lido na sua época, mas Plínio, o Velho, na sua grande enciclopédia do mundo natural do ano 17 d.C., menciona Vitrúvio como fonte em três ocasiões, relacionadas a madeiras, pigmentos e pedras. E, 30 anos depois, Frontino menciona o arquiteto como autoridade no tamanho ou calibre dos encanamentos.

Já nos séculos 3 e 4, há referências esparsas que começam a mencioná-lo como a autoridade mais importante da arquitetura na Antiguidade, incluindo uma carta do século 5, escrita pelo poeta e escritor galo-romano Sidônio Apolinário.

"Sua influência na Idade Média foi esporádica", diz Cuomo, certamente porque as descrições de templos pagãos feitas por Vitrúvio não eram compatíveis com aquela era do Cristianismo.

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"Mas o seu verdadeiro apogeu foi o Renascimento."

Simetria e proporcionalidade

Com a descoberta de uma cópia de 'De Architectura', as igrejas católicas projetadas por Andrea Palladio, como a Basílica de São Jorge Maior, em Veneza, começaram a se parecer com templos gregos
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Tudo começou com a descoberta, em um monastério na Suíça, de uma cópia do livro de Vitrúvio feita no século 9°.

A cópia foi levada a Florença, onde ocorria uma importante conferência com a participação de figuras importantes, como Filippo Brunelleschi (responsável pela cúpula da catedral florentina) e, especialmente, o erudito genovês Leon Battista Alberti, fascinado pela arte e pela arquitetura.

"Quando os arquitetos renascentistas o conhecem, Andrea Palladio em particular, suas igrejas cristãs começaram a se parecer com templos gregos", afirma Robert Tavernor, professor emérito de arquitetura e urbanismo da London School of Economics (LSE), no Reino Unido.

"O Renascimento foi um resgate do mundo clássico e pretendia se afastar da barbárie da arquitetura gótica", acrescenta Tavernor.

"Palladio fala, em um tratado, sobre a necessidade de expulsar os godos da Itália."

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Mas as ideias de simetria e proporcionalidade foram as que influenciaram uma das imagens mais conhecidas do Renascimento: o Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci.

"Vitrúvio acreditava que o corpo humano era um microcosmos da harmonia universal, uma analogia de tudo o que era perfeito na natureza", explica Tavernor.

Ele tomou as ideias de Pitágoras e Platão sobre os números perfeitos, que podem ser vistos nas proporções da forma humana.

O comprimento dos pés representa um sexto da altura do homem ideal e temos 10 dedos. As teorias pitagóricas e platônicas afirmam que o seis é um número perfeito, porque é a soma de um, mais dois, mais três. E o 10 também é perfeito, pois é a soma de dois, mais três, mais quatro. Tudo isso pode ser visto na forma humana.

As proporções perfeitas da forma humana no desenho de Leonardo da Vinci
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Ele também afirma que a geometria provém da forma humana. Por isso, a figura traçada por Leonardo produz a noção do homo quadratus — a figura com os braços e pernas estendidos e inscritos dentro de um círculo e um quadrado. Rodeado pela geometria", explica Tavernor.

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É um exemplo das proporções humanas, em que um dedo está para a palma da mão como esta, para o cotovelo.

"A ideia é que essas figuras perfeitas são a base da arquitetura perfeita", destaca o professor.

A influência de Vitrúvio prosseguiu ao longo dos séculos. Todos os tratados de arquitetura até meados do século 18, sem exceção, fazem referência a Vitrúvio.

E nos anos 1950, o arquiteto, projetista e urbanista franco-suíço Le Corbusier projetou o "Modulor", um sistema de medidas baseado nas proporções humanas, inspirado no conceito vitruviano — aparentemente, uma indicação de que as ideias do antigo arquiteto romano permanecem sendo um modelo para alguns arquitetos modernistas.

Ouça aqui a íntegra (em inglês) do programa "In Our Time", da BBC Radio 4, que inspirou esta reportagem no site BBC Sounds.

- Este texto foi originalmente publicado emhttps://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62401831

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