Desde a queda de Bashar al-Assad, em dezembro de 2024, a Síria tenta se livrar do estigma de "narcoestado" — herança de uma década marcada pela produção industrial de captagon, uma droga sintética altamente viciante, conhecida como "cocaína dos pobres" e utilizada em muitos fronts de guerra pelo mundo. Apesar das operações de repressão promovidas pelo novo governo, o tráfico não desapareceu: apenas se dispersou, se adaptou e continua a prosperar em países como Sudão, Iêmen, Iraque e Líbano.
Guilhem Delteil, da RFI em Paris
As novas autoridades sírias têm promovido ações midiáticas para demonstrar empenho no combate ao narcotráfico. Em apenas duas semanas, foram apreendidas mais de 23 milhões de pílulas de captagon nas regiões de Homs e Damasco, muitas delas vindas do Líbano. A estratégia visa convencer parceiros internacionais — especialmente os países do Golfo, principais destinos da droga — de que o país está comprometido com o desmonte dessa economia ilícita.
O captagon era a marca comercial do cloridrato de fenetilina, um medicamento desenvolvido na década de 1960 para tratar a narcolepsia, um distúrbio do sono, e também hiperatividade e déficit de atenção. Posteriormente, o remédio foi banido em vários países por ser viciante e produzir graves efeitos colaterais.
Durante o regime de Assad, o captagon se tornou uma das principais fontes de financiamento do governo e de enriquecimento para membros do círculo íntimo do ditador. Segundo o think tank norte-americano New Lines Institute, laboratórios foram encontrados em propriedades ligadas a Maher al-Assad, irmão de Bashar, e a outros aliados do antigo regime. Alguns parentes, como o primo do ex-presidente Wassim Badia al-Assad, fugiram do país após a queda do governo.
A diretora do programa sobre captagon do New Lines, Caroline Rose, afirma que há uma "estratégia emergente de combate às drogas" em curso. Segundo ela, além de destruir grandes laboratórios e centros de armazenamento, o novo governo também tem atuado contra redes criminosas menores e remanescentes do antigo regime.
Desde dezembro de 2024, mais de 230 milhões de pílulas foram apreendidas — 23 vezes mais do que no último ano do governo Assad. Ainda assim, a Síria segue como um dos principais centros de produção e distribuição da droga, segundo relatório da ONU de junho de 2025.
Continuidade do tráfico
A continuidade do tráfico se explica por fatores de segurança e economia. A Síria permanece fragmentada, com o governo de Damasco sem controle total do território e fronteiras vulneráveis. Além disso, a crise econômica é profunda: nove em cada dez sírios vivem na pobreza, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Essa vulnerabilidade alimenta o envolvimento de civis no narcotráfico, seja por necessidade ou falta de alternativas.
Até agora, o novo governo sírio tem adotado uma abordagem centrada na segurança, sem investir em políticas de saúde pública ou assistência social. Mas Alexander Söderholm, especialista da Agência Europeia de Drogas, alerta que a repressão, por si só, não basta. "Destruir laboratórios sem oferecer tratamento aos usuários é como tratar o sintoma sem enfrentar a doença", afirma.
A repressão na Síria também provocou uma "reconfiguração" do mercado de captagon. A demanda continua alta, especialmente na Arábia Saudita e nos países do Golfo. Com isso, a produção se espalhou para outros territórios instáveis, como Sudão e Iêmen. No Sudão, um laboratório descoberto em fevereiro tinha embalagens ligadas a uma empresa veterinária síria — possivelmente usada como fachada para o tráfico. No Iêmen, laboratórios foram encontrados tanto em áreas controladas pelos rebeldes houthis quanto em regiões sob domínio de outras facções, indicando que o tráfico transcende alianças políticas ou militares.
Cooperação internacional
Segundo o New Lines Institute, o regime de Assad era responsável por cerca de 80% da produção mundial de captagon. Com a queda do apoio estatal, espera-se uma redução no volume produzido. No entanto, a descentralização e a entrada de novos atores tornam o combate ao tráfico ainda mais complexo. A luta contra essa economia ilícita, portanto, exigirá cooperação internacional, inteligência compartilhada e políticas que vão além da repressão.