As brigas internas do Talebã após tomar o poder no Afeganistão

A disputa parece girar em torno de quem fez mais para garantir a vitória sobre os Estados Unidos, que mantiveram tropas por duas décadas no país, e como o poder acabou dividido no novo gabinete entre os vitoriosos do grupo fundamentalista islâmico.

15 set 2021 - 19h29
Mullah Abdul Ghani Baradar assinou o acordo de paz em Doha que levou à retirada das tropas americanas do Afeganistão
Mullah Abdul Ghani Baradar assinou o acordo de paz em Doha que levou à retirada das tropas americanas do Afeganistão
Foto: AFP / BBC News Brasil

Uma grande disputa eclodiu entre líderes do Talebã poucos dias depois de eles tomarem o poder do Afeganistão e formarem um novo governo nacional

Segundo autoridades do Talebã disseram à BBC, apoiadores de duas facções rivais entraram em conflito no palácio presidencial, localizado na capital Cabul.

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A disputa parece girar em torno de quem fez mais para garantir a vitória sobre os Estados Unidos, que mantiveram tropas por duas décadas no país, e como o poder acabou dividido no novo gabinete entre os vitoriosos do grupo fundamentalista islâmico.

Oficialmente, o Talebã negou os relatos de conflitos entre autoridades e apoiadores.

O grupo assumiu o controle do Afeganistão no mês passado e, desde então, declarou o país um "Emirado Islâmico". Seu novo gabinete provisório é formado apenas por homens e figuras importantes do Talebã, alguns dos quais são conhecidos por ataques aos militares liderados pelos EUA que estavam no país.

O conflito vem à tona pouco depois que um cofundador do Talebã, Mullah Abdul Ghani Baradar, sumiu das aparições públicas por vários dias.

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Uma autoridade do Talebã disse à BBC Pashto (serviço da BBC na língua pashto ou pachto ou pastó, falada por milhões de pessoas no Afeganistão e no Paquistão) que Baradar e Khalil ur-Rahman Haqqani (ministro dos refugiados e uma figura proeminente dentro da rede militante Haqqani) discutiram duramente, enquanto seus apoiadores brigavam entre si nas redondezas.

Um alto membro do Talebã baseado no Catar e uma pessoa ligada aos envolvidos também confirmaram o conflito no final da semana passada.

Segundo a BBC apurou, a briga teve início porque Baradar, o novo vice-primeiro-ministro, estava insatisfeito com a estrutura de seu governo interino. A disputa também girou em torno de quem, no Talebã, deveria receber o crédito pela vitória no Afeganistão.

Para Baradar, a ênfase deve ser colocada na diplomacia conduzida por pessoas como ele. Por outro lado, membros do grupo Haqqani (dirigido por uma das figuras mais importantes do Talebã) e seus apoiadores afirmam que a tomada de poder foi alcançada por meio de combates.

Baradar foi o primeiro líder talibã a se comunicar diretamente com um presidente dos EUA, tendo uma conversa telefônica com Donald Trump em 2020. Antes disso, ele assinou em nome do Talebã o acordo de Doha sobre a retirada das tropas americana.

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Em meio a essa aproximação diplomática, a poderosa rede Haqqani esteve ligada a alguns dos ataques mais violentos que ocorreram no Afeganistão contra as forças afegãs e seus aliados ocidentais nos últimos anos. O grupo é classificado pelos EUA como uma organização terrorista.

Seu líder, Sirajuddin Haqqani, é o ministro do Interior do novo governo.

Rumores sobre a disputa estão se espalhando desde o final da semana passada, quando Baradar (um dos rostos mais conhecidos do Talebã) desapareceu das aparições públicas. Especulou-se nas redes sociais que ele poderia ter morrido.

Nomes importantes do Talebã ouvidos pela BBC afirmam que Baradar havia deixado Cabul e viajado para a cidade de Kandahar após a disputa com Haqqani.

Em uma gravação de áudio atribuída a Baradar, divulgada na segunda-feira, o cofundador do Talebã disse que esteve "em viagens" e que "onde quer que eu esteja no momento, estamos todos bem".

A BBC não conseguiu confirmar a veracidade da gravação, que foi publicada em vários sites oficiais do Talebã.

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O grupo fundamentalista afirmou que não houve conflito entre seus membros e que Baradar está seguro. Mas as explicações sobre o que ele está fazendo fora de Cabul são contraditórias. Um porta-voz disse que Baradar foi a Kandahar para se encontrar com o líder supremo do Talebã, mas depois afirmou à BBC Pashto que ele estava "cansado e queria descansar".

A população afegã tem bons motivos para duvidar da palavra do Talebã. Em 2015, o grupo admitiu encobrir a morte de seu líder fundador, Mullah Omar, por mais de dois anos. No período, o grupo continuou a fazer declarações em seu nome.

Fontes disseram à BBC que Baradar deveria retornar a Cabul e aparecer em frente às câmeras para negar especulações sobre estado de saúde e sobre as disputas de poder.

Há diversas dúvidas e rumores também sobre o comandante supremo do Talebã, Hibatullah Akhundzada, que não aparece em público. Ele é responsável pelos assuntos políticos, militares e religiosos do Talebã.

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Em meio às disputas entre membros do Talebã, o ministro das Relações Exteriores do Afeganistão pediu na terça-feira que os doadores internacionais reiniciassem a ajuda à população local, dizendo que a comunidade internacional não deveria politizar essas ações.

Foram prometidos mais de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5,2 bilhões) em ajuda para o país na segunda-feira, logo após a Organização das Nações Unidas (ONU) sobre uma "catástrofe iminente".

Com a retirada de tropas americanas e internacionais em junho, o Talebã rapidamente tomou o Afeganistão, fazendo milhares de pessoas deixaram suas casas, incluindo o presidente, que fugiu do país
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Estrutura do Talebã

O Talebã (que significa "estudantes" na língua pashto) surgiram no início dos anos 1990 e já chegou com uma estrutura de poder pronta agora em 2021. O grupo fundamentalista islâmico que controlou o Afeganistão entre 1996 e 2001 tem um líder supremo, um conselho com 26 membros e um "gabinete de ministros" que supervisiona atividades em diferentes áreas, como militar e econômica.

Mesmo fora do poder, o grupo era tão organizado que tinha também uma representação internacional em Doha, onde foram tratadas as negociações de paz com os EUA.

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O atual líder, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, assumiu o comando do grupo em 2016. Ele

esteve envolvido na resistência islâmica contra a campanha militar soviética no Afeganistão na década de 1980. Quando assumiu, sua reputação era mais a de um líder religioso do que a de um comandante militar.

Akhundzada é também uma figura importante nos tribunais do Talebã há anos. Acredita-se que tenha emitido decisões apoiando punições islâmicas - como execuções públicas de assassinos e adúlteros condenados e amputações de condenados por roubo.

Apesar de Akhundzada ser líder geral do Talebã, quem mais aparece publicamente é Mullah Abdul Ghani Baradar, um dos fundadores do grupo e seu chefe político. Baradar passou anos preso e quando foi solto, Baradar foi apontado como chefe do escritório diplomático do Talebã no Catar. Esse escritório foi aberto em 2013 com para facilitar as conversas de paz com os EUA e o governo afegão a partir da retirada de tropas americanas. Um acordo de paz acabou sendo fechado em 2020.

Imagem mostra a estrutura do Talebã
Foto: BBC New Brasil / BBC News Brasil

Foi Baradar que entrou em conflito recentemente com Khalil Haqqani, tio de outra figura importante do Talebã, Sirajuddin Haqqani, filho do antigo líder, Jalaluddin Haqqani.

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Liderada por ele, a rede Haqqani é um dos vários grupos militantes que operaram em áreas tribais ao longo da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão após a campanha militar americana que derrubou o Talebã em 2001.

O novo governo do Afeganistão tem à frente Mohammad Hasan Akhund como primeiro-ministro. Baradar é o vice e Haqqani é o ministro do Interior.

Além de ter líderes em cada área, o Talebã tem também um conselho decisório de líderes composto por 26 membros. Esse conselho é chamado de Rahbari Shura, também chamado de "Quetta Shura" por causa de uma cidade paquistanesa com esse nome onde os membros supostamente se reuniriam.

Um "espelho" dos ministérios afegãos também existe dentro do Talebã. São comissões para diferentes áreas, como militar, inteligência, política, economia e mais 13 outras.

Acredita-se que o grupo teve início em seminários religiosos - a maioria financiados com dinheiro da Arábia Saudita - que pregavam uma forma fundamentalista de islamismo sunita. Surgiu no início da década de 1990 no norte do Paquistão, após a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão e em 1998 já controlava 90% do território.

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Apesar das diversas mudanças no país desde a proclamação da República em 1973, com invasão soviética e americana, o Afeganistão continuou sendo, em grande medida, um país de população majoritariamente rural organizada em linhas étnicas e tribais e, portanto, tradicionalistas. O chamado islamismo fundamentalista ou militante emergiu com força por razões políticas a partir do movimento de resistência à ocupação soviética, em 1979.

"Apesar de o Afeganistão ser uma colcha de retalhos, a religião é, sim, o amálgama que une todas essas tribos. O único fio entre esses povos é o islã. Não dá para dizer que é a força motriz, porque acima do islã está o código de honra dos clãs e das tribos, a questão da hospitalidade e da defesa dos iguais acima de tudo, o orgulho da sua história. Portanto, concordo em parte que a religião é importantíssima na sociedade afegã, mas compartilha a ética do clã e da tribo o que constrói o tecido social afegão", afirmou Andrew Traumann, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), à BBC News Brasil.

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