"São relatos de estupros em massa, execuções de pais diante dos filhos, e uma travessia marcada pelo terror", testemunhou à RFI Rodrigue Alitanou, diretor de operações da ONG Alima no Sudão. Ele descreve o drama de mais de 700 mil deslocados em Tawila, após a queda de El Fasher, e alerta para o colapso humanitário, a volta da cólera e a urgência de uma trégua real para conter o avanço da violência paramilitar.
Quantas pessoas morreram em El Fasher, no Sudão, desde que a cidade, localizada no oeste do país, foi tomada por forças paramilitares em 26 de outubro de 2025? Até o momento, a Rede de Médicos Sudaneses e outras organizações internacionais estimam que o número de mortos chega a 3.000, dos quais 2.000 seriam civis. Mas esse número pode ser muito maior.
Onze dias após o ataque, uma análise de vídeos, fotos, imagens de satélite e testemunhos reunidos por investigadores revela a dimensão da violência e dos massacres ocorridos durante e após a tomada da capital de Darfur do Norte pelas Forças de Apoio Rápido (RSF na sigla em inglês).
Desde que a cidade de El Fasher foi tomada por forças paramilitares conhecidas como RSF, mais de 25 mil pessoas fugiram em direção a Tawila, a cerca de 70 quilômetros dali. O local, que já abrigava centenas de milhares de deslocados internos, tornou-se um dos principais pontos de refúgio em meio à escalada da violência no Sudão. Hoje, estima-se que cerca de 700 mil pessoas estejam concentradas na região — número que cresce a cada semana.
Violência sexual indescritível
Rodrigue Alitanou, diretor de operações da organização humanitária Alima no Sudão, relatou à RFI que os testemunhos mais recorrentes entre os recém-chegados são de estupros e assassinatos cometidos durante a fuga. "São relatos de violência sexual indescritível, de homens executados diante de suas famílias, de crianças que viram os pais serem mortos. O trauma é profundo e ainda muito presente", afirma.
A travessia entre El Fasher e Tawila é feita, em sua maioria, a pé. Segundo Alitanou, os poucos meios de transporte disponíveis — carroças e animais — são frequentemente confiscados por grupos armados ao longo do caminho. "Muitos são revistados, ameaçados, perseguidos. Há civis que são procurados ativamente pelas forças militares. O deslocamento é extremamente perigoso", explica. A estrada, hoje conhecida como "rota da morte", simboliza o colapso da segurança na região.
Colapso
Em Tawila, os acampamentos improvisados se multiplicam. A superlotação é crítica. "Já estamos no terceiro acampamento, e novos espaços continuam sendo ocupados. As pessoas vivem em abrigos precários, dormem no chão", relata Alitanou. A promiscuidade e a falta de saneamento básico agravam o risco de doenças. "A epidemia de cólera, que pensávamos controlada, voltou a crescer", alerta.
A infraestrutura de saúde está em colapso. "Desde o início do ano, enfrentamos escassez de recursos financeiros e humanos. A crise é subfinanciada. Nossos profissionais estão exaustos, sobrecarregados. Precisamos de medicamentos, equipamentos e mais organizações atuando aqui", afirma o diretor da Alima, uma das poucas entidades ainda operando na região.
Desconfiança persiste apesar de trégua
Diante da gravidade da situação, uma trégua humanitária foi proposta por um grupo de países envolvidos nas negociações sobre o Sudão. Os paramilitares do RSF aceitaram o acordo, mas a desconfiança persiste. "Queremos acreditar, porque é urgente. As pessoas não aguentam mais. A comunidade internacional precisa se envolver, pressionar por uma paz efetiva. Não podemos reviver os horrores de Geneina, Wad Madani ou El Fasher", diz Alitanou, se referindo às regiões atacadas nos últimos meses.
A Alima segue atuando em Tawila, oferecendo cuidados básicos de saúde em meio ao caos. Mas o apelo é claro: sem reforço internacional, sem coordenação humanitária ampla e sem compromisso real com a paz, o Sudão continuará mergulhado em uma crise que já ultrapassou todos os limites da resistência humana.
Abusos exibidos em redes sociais
Duas organizações — o Sudan War Monitor e o Laboratório de Pesquisa Humanitária da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale — divulgaram nesta semana uma investigação baseada em dezenas de imagens e vídeos que documentam abusos cometidos por paramilitares, registrados e comentados pelos próprios autores, que depois os publicam nas redes sociais.
Em um dos vídeos, os paramilitares caminham entre cadáveres dentro do Hospital Maternidade Saudita, em El Fasher. Um paciente ainda vivo tenta se sentar e é imediatamente baleado. Ouve-se um homem dizer: "Tem um vivo ali, mate-o!". Em seguida, quem filma sai do prédio e mostra dezenas de corpos — todos civis — espalhados pelo pátio. Uma mulher paramilitar incita outros combatentes a violentar mulheres civis.
Com base em vídeos e testemunhos verificados, o Sudan War Monitor concluiu que, após a entrada em El Fasher, os paramilitares se espalharam por diversos bairros, invadindo casas e hospitais, executando civis — em alguns casos, por motivação étnica.
Em outros vídeos, moradores ajoelhados imploram às suas famílias que paguem os resgates exigidos pela RSF para que sejam libertados. Em um deles, aparece uma figura conhecida da cidade, o Dr. Abbas, professor de psicologia da Universidade de El Fasher. Todos esses registros, que documentam a violência ocorrida em El Fasher, poderão um dia ser usados para responsabilizar judicialmente os autores desses crimes.